• Ilustríssima

    Thursday, 16-May-2024 23:29:11 -03

    Arquivo Aberto - Duas Catherines e o calor

    ANNA MARIA MAIOLINO

    02/11/2014 02h56

    Rio de Janeiro, 1991

    Numa tarde quentíssima de verão de 1991, os termômetros medindo 43°C à sombra, aparecem em meu ateliê do Rio de Janeiro as críticas de arte Esther Emílio Carlos, Catherine de Zegher, belga, e Catherine David, francesa, que estavam visitando artistas cariocas.

    Depois eu soube por Esther que ela praticamente as obrigara a me visitar. As duas mulheres, fatigadas com as visitas e pelo calor, ansiavam voltar ao hotel, mas Esther teimosamente seguiu com seu carro para o meu endereço. "Imagina se elas não iam conhecer seu trabalho", disse-me triunfante, entrando com as duas mulheres na escaldante cobertura do velho prédio na esquina da rua Presidente Carlos de Campos com a rua
    Paissandu, em Laranjeiras.

    Às três da tarde, o calor no meu apartamento estava insuportável. Sentia-me constrangida por receber as visitantes naquele calor absurdo. Eu não conseguira terminar a reforma, faltava colocar um imprescindível forro protetor de calor debaixo do telhado. Os ventiladores pendurados no teto pouco adiantavam, só agitavam o ar abrasador.

    Acervo pessoal
    Vista do apartamento de Anna Maria Maiolino, no bairro carioca de Laranjeiras, em 1991
    Vista do apartamento de Anna Maria Maiolino, no bairro carioca de Laranjeiras, em 1991

    Lá fora, a vista fulgurante das colinas do Rio de Janeiro com a verde mata refrescava o meu olhar e fazia-me sentir feliz naquele espaço, em que vivia e trabalhava.

    O Cristo sobre o Corcovado servia de fundo cenográfico ao terraço. Mal as mulheres haviam entrado e eu as invitara a ver a bela vista, como se me desculpasse e as distraísse do extremo calor, acrescentei: "Não acham que o Cristo com seus braços abertos parece que está prestes a levantar voo e planar sobre a baía da Guanabara como uma grande pipa sem fio?".

    Catherine David, que acho que não ouviu, ou não achou graça, continuou impassível, sentada com o copo de refresco na mão visivelmente contrariada. Ainda assim, continuei a falar do privilégio daquela paisagem e das altas e imponentes palmeiras centenárias da rua Paissandu que, durante as tempestades, davam um belo e fantasmagórico espetáculo com as longas copas agitando-se ao compasso do vento, dançando como filhas de santo num terreiro.

    Ofereci a elas toalhas e sugeri que, se quisessem, poderiam tomar uma ducha para se refrescar. Enquanto Catherine de Zegher encaminhava-se ao banheiro, Catherine David continuava sentada sem proferir qualquer palavra. Esther Emílio Carlos, em voz baixa na cozinha, cochichava-me informações sobre as atividades das duas críticas, enquanto eu preparava a bandeja com o gelo.

    Catherine, a francesa, era curadora do Jeu de Paume, em Paris, e Catherine de Zegher dirigia a Fundação de Arte Kanaal, em Kortrijk, na Bélgica, onde alguns dos melhores artistas contemporâneos brasileiros haviam exposto.

    As duas estavam voltando de uma maratona de trabalho em Buenos Aires. Catherine de Zegher havia visitado o artista Victor Grippo, que fora meu companheiro, e por intermédio dele soube de mim e quis me conhecer.
    A visita durou pouco tempo, e Catherine de Zegher, enquanto atravessava a soleira da porta, com simpatia disse-me: "Em breve terás notícias minhas".

    Ela manteve a promessa e inauguramos uma fértil colaboração com seu convite, pouco depois, para que eu participasse da mostra "America, Bride of the Sun - 500 Years Latin America and the Low Countries" (América, noiva do sol - 500 anos América Latina e os Países Baixos), no Museu Real de Belas Artes, na Antuérpia, em 1992.

    Seu interesse pela minha obra foi se consolidando e, em 1995, me incluiu na mostra antológica e itinerante sobre a produção das mulheres na arte desde o século 20, "Inside the Visible: An Elliptical Traverse of 20th Century Art in, of, and from the Feminine" (Dentro do visível: um atravessar elíptico da arte do século 20 no, do e a partir do feminino), curada por ela.

    Em janeiro de 2001, com sua curadoria, expusemos uma retrospectiva dos meus desenhos no The Drawing Center, em Nova York, e editamos o primeiro e belo catálogo sobre minha obra até aquele momento: "Vida Afora/A Life Line" (The Drawing Center).

    ANNA MARIA MAIOLINO, 72, é artista plástica e exibe "Ponto a Ponto" na galeria Luisa Strina até 14/11.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024