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    Leia "Saudação", de Michel Laub, e "O caso Dante x Goethe", de Tom Zé

    09/11/2014 03h25

    "Saudação", de Michel Laub

    Tudo mudou e nada mudou. Pediram para eu escrever uma carta a você, mas é difícil: você não entende o que estou falando. Você ainda não tem linguagem e se eu puser um espelho à sua frente o que aparecerá? Um borrão de formas cujo significado chegará muito depois -um bebê sujo de placenta que sente o horror de algo ainda sem nome: frio, medo. Bem-vindo, é só o que posso desejar. No ponto em que você se encontra, o que importa também não tem nome ainda, um colo, o primeiro contato com a água, o movimento do berço, isto é junho de 2014 em sua história até aqui imediata.

    Cinquenta anos, quem diria. Adianta eu falar de coisas externas, cuja existência você só reconhecerá quando elas não existirem mais? Então fica como num livro embolorado: tanto faz se menciono Jesus Cristo, Joseph Blatter ou Átila, o Huno. Tudo será anterior. Você usará uma expressão para trazer de volta o mundo dos mortos -houve um tempo. Houve peixes e florestas. Houve fronteiras entre países (palavras: "país", "governo"). Houve um sistema chamado democracia (palavra: "Congresso", o que isto dirá para você? O que isto diz para mim em 2064?).

    Mas há também o que chamamos presente: o pulmão respira, o rim filtra, o coração bate, a máquina de ossos e músculos e tendões e gânglios e mucosas e circulação sanguínea, hey, este somos nós, obrigado por não acabar com tudo antes da hora -eu vou precisar de seu bom senso, 50 anos depois, se quiser continuar eterno neste instante que num instante já se foi.

    Vamos para casa amanhã. Houve índios ("índios"), computadores que não usavam implantes, guerras por petróleo ("petróleo"), torneios de futebol que paravam o mundo por 30 dias (hoje: filmes, fotografias, testemunhas). Há coisas que eu poderia pedir para você evitar, pessoas que eu preferia que você não conhecesse, mas, se você não fizer isso tudo, eu deixo de ser quem sou (gosto do que sou? consigo pensar como outro?).

    Os cheiros e o gosto das coisas: você vai se acostumar. Lugares, trabalho. O velório de um amigo num sábado. O fim: o que tudo era antes de você ser puxado para o frio e o medo. Você está mais perto daquele nada do que eu. Ou mais longe: num dia de sol como amanhã (a eternidade são 24 horas quando você nasceu há 24 horas), durante o trajeto para casa (o universo é uma luz morna e o desejo dorme como se não fosse nunca mais voltar), você começa a intuir o limite de suas sensações. É a prisão de cada um -o corpo.

    Mais tarde esse limite se ampliará -sua aparência, seu fôlego para nadar, seu ouvido para música, o tamanho de seu nariz e a combinação de genes que dará a você inteligência ou predisposição para determinados tipos de câncer, e o que é externo a isso (nutrição, escola, o modo como pai e mãe o trataram, o acaso de atravessar a rua e uma vaca não cair do céu) como que se fundirá ao que parecerá a ordem natural de tudo.
    2064 é um tempo difícil. Mas adianta eu explicar como são as coisas por aqui? Quando a data finalmente chegar, você estará preparado. Esse é o sentido de ir para casa agora: a pedra inicial desse treinamento para os dias e anos.

    Caem os dentes. Voltam os dentes. Nascem os pelos. Caem os pelos. Doenças, feridas, medalhas. O corpo se acostuma com estímulos muito violentos, depois começa a reclamar, depois se acostuma de novo, e o cérebro alerta para nossa teimosia e vaidade, e o mundo nos dá uma surra a cada vez que nos iludimos com amor, política, história, arte, dinheiro e falta de dinheiro, poder e falta de poder, o susto que tomamos se o mesmo espelho dos primeiros minutos nos refletir hoje, meu olhar vazio e meus tiques derrotados pela gravidade, um museu ambulante de lembranças que não servem para nada.
    Cinco décadas, e o tempo não existe. Mas há uma beleza contraditória aí: bem-vindo, o tempo ainda é o seu melhor aliado.

    Uwe Walter/Divulgação
    "Sonhador" (2014), de Cristina Canale
    "Sonhador" (2014), de Cristina Canale

    "O caso Dante x Goethe", de Tom Zé

    9h15min. Frio matinal. Vou entrando no Instituto Goethe de Berlim. Sou Elisa, hoje é dia de meu aniversário. Penso um comando para meus óculos abrirem o iJornal... Opa!, mas já vazou isso? Que manchete cruel! "HOMENS TAMBÉM AMAMENTARÃO"

    "Suas mamas, meu rapaz: é hora de fazê-las crescer". Por Santo Einstein! Não se trata disso, absolutamente. O fato é que a fabricação de alimentos já sintetiza o leite com o mapa do genoma e até traços do DNA materno. Porém o bebê não vinha assimilando integralmente o alimento, na ausência da mãe. A seguir, descobriu-se que a proximidade do pai ajudava. O fabricante se esmerou: a mamadeira passou a ter o formato do seio materno, e o pai, com o suspensório que o acompanha, pode manter o seio disponível para o bebê na mesma posição que a mãe o tem.

    O sol havia envelhecido, sua previsão de vida diminuiu, ele terá apenas mais 5 milhões de anos. Quando a notícia-bomba saiu, todas as notas repetiam que "não havia motivo para desespero", mas foi justamente no que deu. Estamos em 2064 e desde janeiro temos vivido constantes ondas de boatos-escândalos, ainda mais que a ciência agora fala grosso e ela precisa de braços:

    "MÃES CEDERÃO FILHOS À CIÊNCIA" -o que se acirrou: Os filhos nem falarão a língua dos pais.

    Esse problema foi levantado no início do século 20. Em "Science and Sanity", Korzybski mostrou que as línguas indo-europeias estão repletas de conceitos metafísicos primitivos, que emperram a mente no momento do aprendizado da ciência. Portanto as crianças "cedidas" falarão um idioma extraído da álgebra + matemática moderna + teoria dos conjuntos. A rua batizou-a com o nome de "cientês".

    "APOCALIP-SOL: SALVAR É CRUEL"

    Atuo no Prog3, administro o relacionamento com a imprensa. Manfred, meu namonoivo, está no D-Cultura. Cuida de traduções para o cientês.

    Ultimamente os abássidas, que foram historicamente grandes amigos da arte e da ciência, tomaram o poder político no Nascente, e a colaboração com o Estado Único Europeu foi muito fortalecida. Devido às necessidades urgentes da comunidade científica, o Oriente está atuando no desenvolvimento atômico, com plena liberdade em todos os níveis. No rol dos últimos escândalos, um diz que

    "A CIÊNCIA NOS ATIÇA PARA UM FIM ATÔMICO"

    Admirei-me: diante dessa notícia, as atitudes de grupos, países e pessoas foram as mais desencontradas. Eu mesma enfrento uma reação estranha: Manfred ficou indignado com o Instituto Goethe, quer processá-lo por desleixo com o patrimônio cultural da União Europeia (!!). Diz que os abássidas, agora em boas condições econômicas, querem "meter-se a cultos" e inventaram uma "sem-vergonhice", com a ajuda do padre espanhol Asín y Palacios.

    Em sua obra de 1919, Palacios afirma que Dante, o próprio Alighieri, plagiou "A Divina Comédia" da obra do poeta Ibn Arabi de Múrcia. E Manfred assegura que o Goethe lhe deu guarida.

    Consultei na biblioteca do Instituto a obra de Palacios: as coincidências são impressionantes. Mas não imaginem que abrirei a boca diante de Manfred para dizer isso. "Nem morta!", como diziam os bisavós dos bons machões brasileiros.

    Saí lá pelas cinco da tarde, passei uns 15 minutos com os moleques da esquina (eles me aceitam, e eu sou eclética em amizades), apostando se os remanescentes carros que apontavam na curva eram elétricos ou a hidrogênio. Perdi cinco paus (cotação de moeda dinossáurica) e parti num táxi aéreo. Parei no prédio do D-Cultura, chamei pelo interfone "herr" Manfred Benvenutti; o aparelho abriu uma foto-viva em que ele aparecia preparando um macarrão para comemorar meus 50 anos, hoje completados.

    Curioso como o medo processa suas fibras e se desloca no centro de cada personalidade, indo para terminais inesperados da histeria humana. Mas, como diz o verso de Eliot, assim acaba o mundo: não com uma explosão, mas com um suspiro.

    MICHEL LAUB, 41, escritor gaúcho e colunista da "Ilustrada".

    CRISTINA CANALE, 53, é artista plástica brasileira radicada em Berlim.

    TOM ZÉ, 78, músico brasileiro, autor de "Tropicalista Lenta Luta" (Publifolha).

    Confira também:

    Leia "Como alcançar pássaros em voo", de Néle Azevedo, e texto de Beatriz Bracher

    Leia "Amor Paterno", de Feridun Zaimoglu, e "Hoje", de Criolo

    A imaginação futurista de alemães e brasileiros

    Leia "Smartshoes" de Kathrin Passig, e o texto de Harald Welzer

    Leia "Amy", de Juli Zeh, e "2064", de Albert Ostermaier

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