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    Diário de Pequim - A marca do dragão e um céu azul artificial

    MARCELO NINIO

    09/11/2014 03h52

    "Uma obra de arte deve ser como um raio de sol num céu azul, uma brisa de primavera que inspire as mentes, aqueça os corações, cultive o bom gosto e limpe os estilos indesejáveis."

    O discurso cheira a anos 40 e parece ter saído da cartilha de Mao Tse-tung, mas é obra do atual líder chinês, Xi Jinping. Numa pregação feita a um grupo de artistas há algumas semanas, Xi lembrou que o Estado continua de olho neles.

    Foi um encontro da elite cultural chinesa como não se via há décadas. Chamados ao Grande Palácio do Povo, palco principal do protocolo comunista, lá estavam nomes consagrados -como o Nobel de literatura Mo Yan e o diretor de cinema Chen Kaige, de "Adeus Minha Concubina". Entre eles, representantes de outras artes, da ópera à caligrafia, além de militares de alta patente, atentos aos preceitos éticos e estéticos de Xi.

    Não é de hoje que líderes chineses propalam diretrizes para a cultura. Em 1942, sete anos antes de fundar a República comunista, Mao Tse-tung fez o mais célebre discurso sobre o tema.

    Na cidade de Yanan, bastião histórico do movimento vermelho, Mao reiterou que via a arte como uma das frentes da revolução. Anos depois, essa filosofia levaria aos excessos da Revolução Cultural (1966-76), quando intelectuais foram perseguidos e uma histeria coletiva tomou conta do país.

    Todos os sucessores de Mao antes de Xi também tiveram momentos como doutrinadores da cultura. A diferença é que hoje a retórica tem muito mais obstáculos para contornar. Como encaixar a estética socialista no capitalismo de Estado que fez do país a segunda economia do mundo? É possível infiltrar ideologia na arte e usá-la como "soft power", ou seja, incrementar no mundo o poder de sedução do estilo chinês?

    ESTRANHA ARQUITETURA

    Desde o início da abertura econômica em 1978, na ressaca da Revolução Cultural, artistas sofrem menos pressão do partido. Mas o discurso retrô de Xi fez ressurgir algumas nuvens do passado.

    Xi defendeu a criação de uma "arte moral" inspirada no socialismo, criticou o apelo comercial dos artistas que cedem ao "cheiro do dinheiro" e bateu forte nas construções "estranhas" que proliferam na China na onda da expansão econômica.

    Criticou especificamente o prédio moderno mais famoso de Pequim, conhecido popularmente como "Calças" por seu formato e que é a sede da TV estatal. Nesse ponto, deve ter agradado a muitos residentes da capital, incomodados com as bizarrices que substituíram parte do tradicional casario da cidade.

    SEM A MARCA DO DRAGÃO

    O Festival de Cinema Brasileiro da China sobrevive, apesar dos percalços. Em seu quinto ano, o evento será aberto no final do mês e levará sete filmes da produção nacional recente a Pequim e Xangai.

    Uma mudança nas regras da censura, porém, atingiu festivais de cinema estrangeiro. O governo passou a exigir legendas em chinês já na pré-seleção dos filmes, o que encarece a produção. A opção dos organizadores brasileiros foi abrir mão do selo da censura, necessário para a exibição em lugares públicos, e realizar o festival em centros alternativos, como o Instituto Italiano de Cultura e a Academia de Cinema de Pequim.

    Sem a "marca do dragão", como é conhecido o selo de aprovação, o festival pôde incluir um longa como "Hoje eu Quero Voltar Sozinho". Com tema gay, dificilmente teria passado pelo controle oficial.

    PIRATAS NO ARMÁRIO

    Um céu azul olímpico, incomum numa cidade que tem a poluição como cartão-postal, imperou nos últimos dias em Pequim. Lembrou para muitos a Olimpíada de 2008, quando o governo fechou fábricas e limitou o número de carros em circulação para fazer bonito para o mundo. Agora o ar ficou respirável devido a outro evento internacional, a cúpula do fórum Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.

    A cidade foi maquiada para receber Barack Obama, Vladimir Putin e os demais governantes que virão nos próximos dias. Além do ar, também foram tomadas providências para disfarçar outra mancha na reputação chinesa: a pirataria. Nos bairros mais badalados, lojas de DVDs piratas foram temporariamente fechadas. Algumas continuam abertas, mas com um acervo bem-comportado: só cópias legais, a maioria de filmes clássicos como "Casablanca" (1942).

    MARCELO NINIO, 48, é correspondente da Folha em Pequim.

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