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    Arquivo Aberto - De Ariano para Heleninha

    SÉRGIO DE CARVALHO

    09/11/2014 03h57

    João Pessoa, 1997

    Em quatro ocasiões me encontrei com o escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014). Já na primeira delas, em 1997, na capital da Paraíba, notei que estava diante de uma pessoa admirável. Vi isso num pequeno gesto, uma dedicatória escrita às pressas, quando estava embaixo de uma lona de circo.

    Na segunda e na terceira vez, foram cenas públicas, em que ele atuava como figura da cultura. Um almoço com políticos da Paraíba, em que constavam, decorativamente, também eu e Antonio Nóbrega. E na abertura de um festival no Recife, quando Suassuna, então secretário do governo pernambucano, teve de enfrentar a vaia bruta de uma plateia após encenação feita por seu sobrinho Romero de Andrade. O coro cresceu com o refrão "abuso de poder", até virar pateada agressiva. Até hoje não sei se surgiu da precariedade da peça ou do valor do cachê pago. Suassuna teve tranquilidade para se pôr de pé na poltrona e responder sorrindo: "A grande arte sempre provoca revolta".

    Marlene Bergamo/Folhapress
    Livro dedicado a Helena Albergaria pelo pai (74) e por Suassuna (97)
    Livro dedicado a Helena Albergaria pelo pai (74) e por Suassuna (97)

    Com mais calma, nos encontramos um ano depois do autógrafo, em seu gabinete oficial, em frente ao rio Capibaribe, no Recife.

    Vínhamos num pequeno grupo da Companhia do Latão para uma entrevista que seria publicada na nossa revista, a "Vintém". Ele folheou alguns exemplares, entendeu logo do que se tratava, não sem alguma estranheza (artistas marxistas!), e organizou a pauta: "Vocês sabem que eu não gosto de Brecht?".

    Talvez ele tenha se perturbado com a própria frase. Logo viu que nossas perguntas desarmadas pediam histórias de seus anos de formação com Hermilo Borba Filho (1917-76), teórico e artista brilhante, que tanto o influenciou em seu começo no teatro. Ou da proximidade entre o barroco ibérico e a arte popular brasileira.

    Não estávamos ali para inquirição política. Então, do nada, ele lançou: "Não tenho simpatia pela burguesia". E explicou: "Pertenço a uma classe, o patriarcado rural brasileiro, que gosta do povo".

    No mesmo compasso classista, deu um jeito de falar na derrocada da União Soviética e dizer, para nosso riso, que tinha saudades de Stálin. "Quem muito se agacha, o fiofó lhe aparece", foi a frase sobre o "bandido" Boris Ieltsin.

    E sintetizou: "A utopia é uma coisa importante. A gente tem que pôr o sonho de liberdade e justiça na frente e caminhar até ele.

    Então vou começar a relembrar o que Stálin tinha de positivo. Não vou mais brigar".

    A fala ambígua de Suassuna surgia como proposta de relação: um tanto de uma armadilha irônica, outro tanto de desejo de acordo, sempre interessada em nossa reação fraterna.

    "Uma peça é um tumulto", eu disse a ele. "Você lembra que escreveu isso?"

    "Foi, é?", ele me respondeu.

    "É mesmo? É mesmo? Um tumulto? Não me lembro mais, não. Mas é isso, os dramaturgos são mais desse outro mundo: da impureza, da misturada, não é?"

    Entre o conflito e o encontro, pensei na confusão do teatro e na dedicatória do ano anterior: era uma reunião de palhaços e artistas populares na Paraíba. Nós dois também estávamos presentes, alguém de imaginação achou que podíamos contribuir como intelectuais da palhaçada. Eu levava uma encomenda embaixo do braço: uma edição da "Farsa da Boa Preguiça" para ser autografada. Era de Helena Albergaria, minha amada companheira, ela sim leitora entusiasmada de Suassuna. Faço o pedido na saída de sua conferência.

    Ele abre o exemplar e vê outra dedicatória mais antiga: "À Heleninha, do papai, S. Paulo, setembro de 74". Pela data, uma menina de dois anos. Um médico deu à filha, a brasileirinha que havia pouco chegava ao mundo, um livro, aquele livro. Juarez Ricardo morreria muito jovem. Mas viu Helena se tornar atriz.

    Suassuna entendeu, antes que eu explicasse. Eu contei a ele a história, aos pedaços, e ele escreveu sua dedicatória embaixo: "Para Helena, referendando o oferecimento do seu Pai, o carinho e o afeto de Ariano Suassuna". Ainda disse: mande meu abraço a Heleninha.

    SÉRGIO DE CARVALHO, 47, é diretor do grupo teatral Companhia do Latão e professor de dramaturgia na USP.

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