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    Leia a íntegra da entrevista com o sociólogo francês Denis Merklen

    ÚRSULA PASSOS

    09/11/2014 03h35

    O sociólogo francês Denis Merklen, 48, que estuda leitura e classes populares, participa da mesa Livros Incendiários na Flupp na quinta (13), às 14h, com o comunicólogo costarriquenho Carlos Sandoval e o secretário municipal de Cultura Sérgio Sá Leitão.

    Merklen estudou por cinco anos o fenômeno das bibliotecas incendiadas nas periferias francesas –entre 1996 e 2013 foram 70 as bibliotecas incendiadas pela população. Como resultado, escreveu o livro "Pourquoi Brûle-t-on des Bibliothèques?" (Por que se queimam bibliotecas?) [Presses de l'ENSSIB, 2013, 349 págs.].

    Também baseado em pesquisas em países como Argentina, China, Haiti, Senegal e Uruguai ele escreveu o livro "Quartiers populaires, quartiers politiques" (Bairros populares, bairros políticos) [La Dispute, 2009, 304 págs.), sobre os movimentos das classes trabalhadoras em bairros de periferia.

    Em entrevista à Folha por telefone de Bogotá, onde participa de evento antes de sua vinda ao Rio para a Flupp, Merklen fala sobre o papel das bibliotecas, a importância da leitura e do trabalho dos bibliotecários.

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    Folha - Qual a importância da leitura hoje?

    Merklen - A leitura hoje é fundamental, ela o é há tempos e ela o é cada vez mais porque na revolução digital que estamos vivendo os meios de comunicação, ao contrário do que se pensa normalmente, nos demandam ler e escrever para poder comunicar. As periferias urbanas, as classes populares, os grupos mais pobres da sociedade dependem cada vez mais das políticas públicas para resolver um número enorme de problemas e, frequentemente, para entrar em contato com as administrações municipais, do Estado, serviços sociais, etc, necessitam poder ler e escrever para poder entrar em contato com as administrações do Estado e da burocracia.

    Há ainda uma razão política e social fundamental, que é cultural também. A leitura continua a veicular um modo de emancipação, de integração social, de relação com o coletivo que não se faz de outra forma. Já vimos isso na história da humanidade: se há um grupo social que fica excluído da leitura e da escrita, ele terá enormes problemas.

    O que fazer para que o livro deixe de ser um objeto social que traça fronteiras entre grupos sociais, como o sr. diz em seu livro, ou para que seja mais do que isso? O que as iniciativas públicas podem fazer para que as bibliotecas não sejam vistas pelas comunidades como uma força vinda do exterior?

    Os países que se tornaram grandes nações de leitores, como a Inglaterra e a França, os EUA, assim se tornaram graças a formidáveis trabalhos muito laboriosos e muito longos, por décadas e séculos, e esse trabalho envolveu um grande número de atores: o Estado, a educação, as políticas culturais, mas também, muitas vezes, sindicatos, partidos políticos e igrejas. Segundo o contexto, o tipo de iniciativa é muito diferente e o que sabemos hoje é que a leitura não se faz sozinha, mas a leitura se constrói, muito lentamente e é um trabalho que não se pode dar por acabado, é um combate que não se pode considerar jamais como vencido.

    Por exemplo, as crianças para as quais as mães lêem histórias todas as noites têm muito mais chances de se tornarem grandes leitores na idade adulta do que crianças para quem não se contou histórias à noite. Isso é muito importante e, ao mesmo tempo, é algo difícil de se fazer porque existem diversas categorias sociais nas quais a mãe não está presente no momento em que a criança se deita à noite, no momento de colocar as crianças na cama. Então esse trabalho cotidiano, minucioso, cheio de afeto, é difícil de se realizar. Da mesma forma, o trabalho de associações, de grupos, é um trabalho lento, minucioso, mas é apenas ao preço desse trabalho político, coletivo, e em diversos registros da sociedade, que a prática da leitura se torna uma realidade. Em consequência, o livro deixa de ser um objeto de certos grupos sociais que se distinguem de outros.

    Mas não há uma única maneira de ler, pode ser uma forma de se diferenciar do outro –vamos a um jantar e cada um pode fazer o papel de intelectual e dizer que leu não sei qual autor e tentar se diferenciar, se dar um certo prestígio para se colocar acima de seu interlocutor–, essa é uma maneira de ler. E essa maneira contrói fronteiras sociais e é uma forma individualizante, na qual nos separamos dos outros aos invés de nos encontrarmos, de construirmos um espaço coletivo e comum. Mas, ao contrário, quando a leitura se torna uma ferramenta de troca, de encontro, de atividades sociais, nesse momento, o sentido da leitura muda completamente, não lemos para nos colocarmos acima dos outros, lemos simplemente para estar com os outros.

    O sociólogo francês Pierre Bordieu dizia que lemos quando temos um espaço social, um mercado social, um universo no qual podemos falar sobre a leitura que fizemos. Isso é muito importante. É preciso também que as diferentes atividades sociais se refiram à leitura. Por exemplo, se os políticos começam a fazer política por meio do Twitter e do Facebook, há menos chances de que a atividade política seja referida à leitura do que se fosse feita num espaço de troca com intelectuais no qual a leitura se torna importante para se tornar cidadão. Lê-se o Twitter e não se lê um livro para compreender tal e tal política nesse caso.

    A imprensa também tem um papel fundamental. Se os artigos são cada vez mais curtos na imprensa, há menos oportunidades para que as pessoas amem a leitura longa e lenta. E esse também é um outro fenômeno que é muito importante: há na atualidade um recuo da leitura longa e lenta. Não é tão importante ler muitas coisas diferentes; às vezes, é muito importante pegar um livro que vai nos acompanhar por todo um momento de nossa vida, como esses grandes romances ou livros que nos levam a muitas reflexões, discussões, que nos levam a assistir a um filme, a escutar uma música. E isso, contrariamente ao que se crê na história social recente, não é um privilégio dos intelectuais. As classes populares souberam, por elas mesmas, construir espaços de leitura nos quais se lê, se vê peças de teatro, se vai ao cinema, se escuta rádio; há universos culturais que favorecem a relação com o livro e com leitura e há outros que a tornam difícil.

    No Brasil, discute-se atualmente o número baixo de bibliotecas por habitantes (uma biblioteca pública para cada 33 mil habitantes, em média, e um déficit de 128.020 bibliotecas escolares). Como aproximar as bibliotecas da população?

    A biblioteca deve ser estrategicamente bem localizada na cidade, seja em espaços de grande circulação –onde as pessoas vão passar, vão parar, fazer atividades comerciais, culturais, esportivas–, seja perto dos domicílios. A biblioteca tem um papel fundamental que nenhum outro aparelho cultural pode preencher.

    Muita gente pensa que, no momento em que, na internet, tivermos todos os livros potencialmente acessíveis na tela, não teremos mais necessidade de bibliotecas. O que faríamos numa biblioteca se os livros já estão ali nas nossas telas? É um erro enorme pensar assim, porque a biblioteca não é um depósito de livros. A biblioteca e o bibliotecário têm um papel fundamental, que é o de orientar o leitor, de propor a ele uma coleção de livros. O bibliotecário tem o papel fundamental de ir buscar na imensa floresta de frutas e legumes quais são os frutos preciosos, quais são as leituras que podem ser as mais interessantes para cada população. O bibliotecário é um agente social e cultural que devemos cultivar enormemente porque o bibliotecário é aquele que conhece, ao mesmo tempo, seu público, seus pares, as pessoas com quem ele convive e com quem ele trabalha, e deve ter uma formação cultural muito importante para poder saber o que se estuda hoje, o que está traduzido, do que se fala naquela revista, naquele livro, naquela coleção, aquele autor etc.

    Essa orientação da leitura é mais importante que a internet que nos dá acesso a tudo. E não há nada mais derrotante para um indivíduo do que se encontrar diante de uma infinidade de coisas que ele desconhece, e então ele nada faz. O bibliotecário, então, junto do professor, têm um papel insubstitível e que será cada vez mais insubstituível, com a condição de que ele seja bem formado, de que tenha uma relação social, cultural e política muito dinâmica com seu público e que ele saiba evoluir.

    O que vimos na França é que as bibliotecas não estão ali apenas contra a ignorância, contra a falta de livros, de publicações etc, mas elas são, sobretudo, uma ferramenta que permite abrir um espaço diferente daquele das indústrias culturais. Um dos adversários da biblioteca são as indústrias culturais, que estão atentas ao consumidor, têm necessidade de vender e vendem todo tipo de produto: belos e não belos, bons e ruins. A biblioteca é, ao contrário, um projeto. Um projeto para um bairro, para uma população, para um grupo social, para as mulheres, para os adolescentes, para um movimento social, para um sindicato, para uma associação, para um partido político. Existem tantas bibliotecas possíveis quanto os projetos de vida coletiva por trás da biblioteca.

    Não é só o número de bibliotecas, mas o papel e a maneira com a qual ela vai assumir o seu papel. A biblioteca deve ser um espaço agradável, que convida a se ficar nele, a se sentar, a relaxar, a trabalhar em grupo, a discutir, a se informar. Ela pode ser pensada de diversas maneiras e, nesse momento, ela ganha vida. As pessoas que tiveram boas experiências na biblioteca são pessoas que, normalmente, cultivam a biblioteca como um lugar que foi precioso para elas em suas vidas, em um momento de suas vidas, na adolescência, ou quando estudantes, ou quando jovens mães e não sabiam como educar seus filhos ou o que oferecer a seus filhos, e é com o bibliotecário que se discute isso. E para isso são necessárias muitas bibliotecas.

    Qual o lugar das culturas da escrita?

    Contrariamente ao que pensamos em um determinado momento, em que pensávamos que a leitura e a escrita estavam em declínio inevitável, vemos as coisas mais contrastadas. Por um lado, é verdade que as estatísticas mostram o declínio de uma certa forma de leitura, principalmente a leitura longa e lenta da qual já falamos, mas ao mesmo tempo, e é sobre isso que trabalho atualmente, existe um fenômeno muito interessante de pessoas da periferia que se aventuram na escrita, que se tornam escritores e que publicam todo tipo de coisa. Eles escrevem canções, peças de teatro, histórias autobiográficas, e, frequentemente, eles passam depois a escrever romances.

    Na França vemos um fenômeno muito interessante. As classes populares de hoje não são como as classes populares de antes, porque entre os jovens agora há uma penetração muito maior da escola do que havia em outras gerações. Então esses jovens que têm hoje 25, 30 anos, que são escolarizados, mas que pertencem às classes populares, eles tomam a palavra para escrever, são autônomos, independentes. Eles fornecem, eles mesmos, uma visão de mundo, uma visão do mundo deles, e se colocam as questões: "quem sou eu?", "quem somos nós?", "em que mundo vivemos?", "em que direção o mundo vai e em que direção eu gostaria que ele fosse?". Há uma relação com a escrita que é muito interessante, que é daquele que toma a palavra para se exprimir em seu próprio nome.

    Há também outras relações com a escrita, eu já falei da relação com as instituições –devemos saber escrever para poder preencher um formulário– e aí há formas de violência muito fortes. Aqueles que dominam a escrita se saem melhor do que os outros.

    Há ainda a relação com a escola, que é uma relação complexa, porque sabemos que sem escola é muito difícil de se sair bem economicamente, pelo trabalho, e ao mesmo tempo nós sabemos também que há muita gente que frequentou a escola, mas que depois não se saiu bem no mercado de trabalho. Então, a escola não mantém sua promessa, ela não pode garantir que todos aqueles que completam seus estudos terão uma vida digna, uma vida respeitável, uma vida promissora. E isso coloca um imenso problema para as classes populares, que têm uma relação muito complexa com a escrita, que sabem que devem fazer esforços para aprender a ler e a escrever, para dominar bem a ferramenta da escrita, mas ao mesmo tempo elas são completamente conscientes de que, mesmo que consigam isso, talvez não obtenham sucesso.

    Então temos três tipos de relação com a escrita que são diferentes: a relação com a escola, a relação com a administração e a relação com a escrita daqueles que tomam a palavra em seu próprio nome. E há ainda uma quarta relação com a escrita que é aquela da política e da mídia, a relação com o jornalismo e com os jornalistas. Nessa relação há, frequentemente, um sentimento de distância social, de fronteira social entre as classes populares e o mundo da política quando esta passa pela escrita, passa pela mídia escrita, pelo regulamento, pela lei, pelo direito. E nessa dimensão da relação com a escrita os jornalistas têm um papel fundamental, pois eles devem poder escrever para essa categoria social para fazer evoluir a escrita e o discurso político nessas classes sociais.

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