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    Arquivo Aberto - Não teve missa, depois te conto

    FERNANDO LEMOS

    16/11/2014 03h30

    São Paulo, 1967

    Nos anos 60, a Unesco elegeu o brasileiro Lourival Gomes Machado para diretor de seu setor cultural -único intelectual latino-americano, aliás, a ocupar semelhante cargo. Ficamos aqui contentes, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e outros -criadores da famosa revista "Clima" (denominados por Oswald de Andrade como "chatos boys")-, e Alfredo Mesquita, do Suplemento Literário do "Estado de S. Paulo", assumido então pelo Décio, e onde fui ilustrador convidado por vários anos.

    Lourival foi, além de catedrático da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na rua Maria Antonia, onde ficavam alguns dos seus departamentos, entre eles o de ciências sociais, diretor da Faculdade de Arquitetura da rua Maranhão. Ele foi o primeiro dirigente ligado às artes; até então, a direção coubera a engenheiros, por ser a arquitetura ainda considerada como disciplina da Politécnica.

    Frenando Lemos/Acervo Pessoal
    Lourival, Lourdes e o filho Lucio, com Lemos (à esq.), em Paris, 1963
    Lourival, Lourdes e o filho Lucio, com Lemos (à esq.), em Paris, 1963

    Seu grande feito foi a reforma do ensino de arquitetura (a Reforma de 62), pioneira no Brasil em novo modelo de ensino.

    Lourival era de grande estatura de alma e dono de ironia sem agressividade. Tinha a capacidade de falar simples, inteligente e claro. Nunca o percebi pedante. Era vaidoso, mas com um ego justificado pela admiração geral dos alunos, colegas e alguns inimigos.

    Intelectual de muita erudição, aberto a polêmicas, organizou no MAM (na época, à rua Sete de Abril) eventos de discussões sobre temas e movimentos artísticos, com presença de críticos e universitários.

    Em 1961, ele assumiu, convidado pela Fundação Armando Alvares Penteado e por integrantes do Patrimônio Histórico Nacional, uma exposição com catálogo sobre o barroco no Brasil. Fomos juntos pesquisar e fazer a coleta das peças para a montagem da mostra. Aprendi a localizar o patrimônio do período histórico na Bahia, no Recife, em Olinda, em grande parte de conventos e universidades de Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João del-Rei. No final, lamentavelmente, por desacordos com a diretoria da fundação, nos demitimos.

    Fui frequentador constante da família de Lourival. Quase todos os domingos, pegava a lambreta, passava pela casa no Sumaré, onde tinha chá, a simpatia de Lourdes, sua mulher, e a curiosidade do filho Lucio, ainda pequeno demais para já ser arquiteto.

    Lourival residia na sede da Unesco em Paris desde 1962 e se encontrava em plena função do cargo, quando, em 1967, na campanha de preservação dos monumentos e obras de arte de Veneza e Florença, foi acometido por um infarto fulminante.

    Velado solenemente na Unesco, o corpo foi transladado para o Brasil, para novo velório, agora na faculdade de sociologia da USP, na rua Maria Antonia. Foi nessa altura que surgiram comentários de que a diretoria da Fundação Bienal de São Paulo, onde várias vezes ele fora diretor, tinha encomendado uma missa em sua homenagem.

    Depois da sua morte, essa foi outra notícia dolorosa. Uma missa? Foi desconcertante e fora de propósito. Lourival era intelectual agnóstico e só entrava em igrejas na crença da arte.

    Lourdes Machado me telefonou contando o caso, queixando-se porque não cabia na personalidade de Lourival a missa de sétimo dia que iria acontecer no dia seguinte, e pareceu-me ouvir do outro lado da linha uma risada dele, no humor que sempre caracterizou nossa amizade. Pediu-me apoio e deu-me liberdade para interceder.

    Desliguei e, lambreta em punho, fui até a igreja localizada na alameda Franca. Lá chegando, pedi para falar com o responsável do culto, e um padre americano de aspecto agradável se apresentou. De supetão, já foi perguntando qual era minha profissão, provavelmente intrigado com minha aparência, que em geral era desvinculada de qualquer aparato social ou moda definida. Respondi que era pintor do movimento surrealista.

    As perguntas terminaram por aí, e expliquei que Lourival, mesmo sendo conhecedor de todas as crenças, era total e absolutamente ateu, e que a família, que não fora consultada, não desejava nenhuma missa rezada para sua alma pagã. Após essa fala, o padre, sem hesitação, confirmou que a missa seria então anulada, mas pediu minha presença quando fosse a chegada dos que a haviam encomendado, porque não havia mais tempo para uma comunicação.

    A diretoria responsável pela Bienal e alguns acompanhantes surpresos foram recebidos pelo padre na porta da igreja, que declarou ter sido a missa cancelada por pedido da família, mas que o templo estava aberto se quisessem rezar, por convicção particular de cada um, independentemente da não missa.

    Ninguém aceitou a oferta generosa, viraram as costas e se foram sem solenidade.

    Fui o único a entrar na igreja. Da sacristia, onde o simpático padre me indicou o aparelho telefônico, liguei para Lourdes: "Não teve missa, depois te conto".

    FERNANDO LEMOS, 88, artista plástico, designer e fotógrafo português radicado no Brasil. Sua mostra "Tamanhos", com Renina Katz, está em cartaz na galeria Garage até 29/11.

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