• Ilustríssima

    Monday, 06-May-2024 07:13:41 -03

    Poesia muçulmana em um casamento não islâmico

    GILLIAN TETT
    DO "FINANCIAL TIMES"

    16/11/2014 03h05

    No mês passado, em companhia de centenas de distintos convidados, assisti ao casamento de Robert Hormats, que foi funcionário importante do governo Obama, e Catherine Azmoodeh. A ocasião foi memorável por muitos motivos: a lista de convidados poderosos; o local histórico (Oheka Castle, em Long Island); e, o mais importante, um noivo e noiva apaixonados a ponto de declarar repetidamente o seu amor diante da plateia reluzente.

    Mas para mim, o momento mais notável não aconteceu por conta do noivo ou noiva, mas de uma surpreendente intervenção do pai da noiva. Na metade da cerimônia, ele se levantou e leu um extrato de um poema em persa (a família Azmoodeh tem suas origens em Teerã):

    Az mohabbat talkh-hâ shirin shavad
    az mohabbat mes-hâ zarrin shavad
    az mohabbat dord-hâ sâfi shavad
    az mohabbat dard-hâ shâfi shavad

    Em seguida, ele traduziu os versos para os convidados:

    Pelo amor, o amargo se torna doce
    Pelo amor, o cobre se torna ouro
    Pelo amor, a borra se torna limpa
    Pelo amor, a dor se torna cura

    Para os convidados, o texto talvez parecesse simplesmente mais um soneto de amor –bem apropriado à ocasião, aparentemente. Mas a escolha ocultava uma reviravolta fascinante: o autor não era qualquer escritor sentimental, mas Jalal ad-Din Rumi, um estudioso e filósofo islâmico do século 13 que provém da tradição sufista, uma vertente mística do islamismo.

    Eu duvido que muitos dos convidados ao casamento fossem capazes de reconhecer o poema; Rumi não é muito conhecido no Ocidente. De fato, muitos norte-americanos comuns podem se surpreender com a existência de um cânone de poemas de amor islâmicos. A imagem do Islã se tornou tão sombria devido aos horrores promulgados por grupos como o Estado Islâmico no Iraque e Levante que a ideia de citar um poema muçulmano em um casamento não islâmico poderia parecer bizarra a alguns norte-americanos, especialmente em um evento como o matrimônio entre Hormats e Azmoodeh, conduzido em parte de acordo com o rito judaico, para refletir as origens da família Hormats.

    Mas quando ouvi a estrofe, quis comemorar. Porque embora o Islã extremista e a linha dura do wahhabismo tenham orientado a maneira pela qual muitos norte-americanos veem o islamismo, a realidade é que esse tipo de extremismo é apenas um dos ramos da fé muçulmana. O Islã, como o cristianismo, o judaísmo e o budismo, tem muitas escolas intelectuais diferentes. E o tipo de Islã que Rumi representa é não só refrescantemente diferente da imagem atual do islamismo como potencialmente inspirador.

    Pois os poemas de Rumi não só celebram o amor romântico humano como expressam respeito por outros grupos religiosos e pela busca do conhecimento. Ou, como escreveu Rumi, "do conhecimento, cresce o amor –ou a estupidez algum dia conduziu alguém a tão elevado trono?" Ainda mais importante é o que Rumi não diz: em momento algum ele conclama à jihad. Em lugar disso, suas estrofes falam positivamente sobre as mulheres, sobre a educação e o comércio. Ou, para expressar de outra maneira, o tipo de islamismo que Rumi representa oferece amplo território que os norte-americanos e europeus modernos considerariam familiar (para não mencionar os asiáticos provenientes de tradições como a do confucionismo).

    Isso é notável por si. Ainda mais notável é que a tradição sufista que ele representa não é simplesmente uma faceta do passado. Pelo contrário: ela dá forma ao modo pelo qual algumas comunidades islâmicas pensam sobre o mundo até hoje.

    Duas décadas atrás, vivi por um ano em uma comunidade de fala persa no Tajiquistão. As famílias tajiques eram ferozmente orgulhosas de sua identidade islâmica; a tal ponto que a mantiveram, secretamente, pelas muitas décadas de domínio comunista, ainda que sob o risco de condenação ao gulag.

    Mas a visão do Islã que elas lutavam por defender incorporava muitas tradições sufistas, e sofria pesada influência das ideias de Rumi. Foi lá que encontrei pela primeira vez os trabalhos do poeta –e ouvi pessoas como Munira Shahidi, a matriarca da família com quem eu vivia, e herdeira de uma longa linhagem de estudiosos islâmicos khoja, exaltar o valor do "multiculturalismo e da tolerância". Aquele quadrante da Estrada da Seda era claramente islâmico, mas estava envolvido não apenas no comércio de bens mas no de ideias e culturas.

    A tragédia de nosso mundo moderno é que exatamente porque essa face do Islã é mais sutil e pacífica, ela se vê abafada com grande facilidade pela violência crua. Por isso o sufismo é relativamente desconhecido. Mas quanto mais piorarem as relações entre o Islã e o mundo ocidental não islâmico, mais necessitaremos buscar alguma coisa –qualquer coisa– que possa nos permitir encontrar terreno comum. Talvez seja hora de incluir poemas de amor de Rumi não só nos casamentos mas nos currículos de algumas escolas norte-americanas e europeias –se por nenhum outro motivo, para mostrar às crianças ocidentais que o Islã é muito maior do que as tragédias que elas veem em seus televisores e celulares.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024