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    Editora Norton lança sua antologia mais recente: de religiões mundiais

    JENNIFER SCHUESSLER
    DO "NEW YORK TIMES"

    14/11/2014 14h14

    Jack Miles empreendeu um projeto no mínimo ambicioso: escrever uma "biografia" de Deus, que lhe valeu um Prêmio Pulitzer.

    Mas quando a editora W.W. Norton & Company o procurou, nove anos atrás, e o convidou para ser o editor geral de sua edição inaugural de "The Norton Anthology of World Religions", Miles, ex-seminarista jesuíta, hesitou. Embora o timing parecesse correto, considerando a sede de entendimento inter-religioso pós-11 de setembro, a tarefa era avassaladora.

    "Achei que eu não sabia o suficiente", recordou recentemente Miles, professor de inglês e estudos religiosos na Universidade da Califórnia em Irvine.

    Mas ele se deixou persuadir, mesmo assim, e agora a antologia está aqui, com cerca de 4.200 páginas de textos que cobrem aproximados 3.500 anos.

    Narinder Nanu-6.nov.2014/AFP
    Fogos de artifício no Templo Dourado, em Amritsar no 545º aniversário de Sri Guru Nanak Dev, fundador da religião sikh
    Fogos de artifício no Templo Dourado, em Amritsar, na Índia, no 545º aniversário de Sri Guru Nanak Dev, fundador da religião sikh

    A obra em dois volumes, pesando quase quatro quilos e que vem em um estojo decorado com um desenho de cores sugestivamente numinoso, mas sem especificidade cultural, dá a impressão de ter sido criada para ser dada de presente de fim de ano a pessoas de tendência ecumênica (ou, se você é Richard Dawkins ou uma mesinha de canto que balança, para ser o pior presente do mundo). É também uma das antologias mais complexas que a Norton já criou, uma obra que promete lançar discussões que envolvem questões mais importantes que as picuinhas que cercaram outro compêndio influente da editora, "The Norton Anthology of English Literature", no auge das guerras sobre o cânone literário.

    "Haverá contestações", disse Julia Reidhead, diretora editorial da divisão universitária da Norton. "A antologia foi criada desde um ponto de vista secular, mas o ortodoxo de qualquer tradição pode olhar várias coisas e dizer 'não concordo'."

    A Norton ressalta que a antologia veio em missão de paz, com a intenção de deixar que as seis "religiões principais, vivas, internacionais" -hinduísmo, budismo, taoísmo, judaísmo, cristianismo e islã-expressem sua sabedoria "em suas próprias palavras". Escolhidos por um especialista em cada tradição recrutado por Jack Miles, os trechos selecionados incluem textos fundamentais como a Bíblia, o Alcorão e o Rig-Veda, além de respostas e teses de pregadores, teólogos, missionários, filósofos, poetas e até um artista de hip-hop, RZA, da banda Wu-Tang Clan, trechos de cujo livro "The Wu-Tang Manual" são inseridos na seção sobre taoísmo.

    Foi dada atenção especial a textos de mulheres e sobre mulheres, do maior número possível de períodos, entre eles um trecho da autobiografia de Jarena Lee (1783-circa 1849), uma das primeiras pregadoras negras conhecidas dos Estados Unidos, e uma homenagem islâmica medieval a devotas sufistas. Há também muito do que Miles descreveu como "vozes escandalosas", desde dissidentes como o profeta mórmon Joseph Smith até fundamentalistas radicais como Osama bin Laden e ateus como Bertrand Russell, do qual é incluído um trecho de seu ensaio de 1927 "Why I Am Not a Christian" (Por que não sou cristão).

    "Não hesitamos em incluir essas vozes", disse Miles. "Quando eram importantes dentro da tradição, nós as incluímos."

    Reidhead admitiu ter tido alguns momentos de dúvidas do tipo "será que vai vender no Texas?" (alusão ao grande mercado de faculdades naquele Estado) - por exemplo quando Wendy Doniger, a editora da seção sobre hinduísmo, quis incluir um poema dalit contemporâneo cujo título coloca Deus em posição comprometedora com sua mãe.

    "Há textos de todas essas tradições que são blasfemos", disse Reidhead. "Mas naquele caso eu perguntei: 'Será que precisamos realmente disso?'."

    O poema não entrou na antologia. Mas, para alguns acadêmicos, a gama extensa de materiais presentes encerra uma crítica às caricaturas redutivas, quer seja do islã como "filão principal de más ideias", como disse recentemente o escritor Sam Harris, ou do budismo como sendo nada mais que uma prática meditativa.

    "Esta antologia é um projeto importante, e não apenas para a academia", comentou Mark C. Taylor, presidente do departamento de religião da Universidade Columbia, que não teve envolvimento com o trabalho. "Precisamos urgentemente que pessoas de todos os setores da sociedade tenham um entendimento melhor dessas tradições."

    A antologia, que será dividida em seis livros de capa mole, um para cada tradição, para o mercado universitário, chega num momento comercialmente muito oportuno. Cerca de 250 mil estudantes seguem cursos de religião todos os anos na América do Norte, segundo a análise das vendas de livros didáticos feita pela Norton a partir do banco de dados PubTrack.

    Mas a obra chega também num momento em que a disciplina dos estudos religiosos está mergulhada numa discussão contínua sobre suas premissas básicas, a começar pelo próprio termo "religião". Em sua introdução, Miles cita uma anedota sobre um fórum encabeçado pela Academia Americana de Religião, onde um esforço para definir o termo -a religião é uma questão de crença? De práxis? De identidade cultural e étnica? -levou metade dos participantes a abandonar o recinto, irados.

    Mais especificamente, alguns acadêmicos questionam a noção de "religiões mundiais" como construto ocidental originado por estudiosos europeus que "descobriram" o Oriente, reduzindo suas práticas estarrecedoramente complexas a "ismos" monolíticos, baseados em textos e que se assemelhavam ao cristianismo. Mesmo hoje, argumentam esses estudiosos, a disciplina é assombrada pelo "absolutismo cristão morto-vivo", como diz Tomoko Masuzawa em seu livro influente "The Invention of World Religions" (2005).

    Por acaso, Masuzawa é casada com Donald S. Lopez Jr., editor da seção de budismo da antologia.

    "Fui muito criticado em casa devido à questão", comentou Lopez, professor da Universidade do Michigan. Mas ele espera que os professores usem a própria antologia, que começa com um texto de Miles discutindo esses debates, "para examinar a categoria mais a fundo".

    Algumas seções podem suscitar algum espanto entre especialistas. A seção sobre taoísmo, por exemplo, editada por James Robson, de Harvard, extrapola de longe a divisão antes padronizada traçada entre o taoísmo "puro", filosófico, e a prática "impura" ou supersticiosa, colocando clássicos filosóficos como o "Daode Jing" e o "Zhuangzi" ao lado de textos ligados à alquimia e ao cuidado do copo, sem falar em obras como "O Tao da Física" e "The Inner Light", de George Harrison.

    "Alguns estudiosos vão se surpreender com a amplitude das contribuições que escolhi", disse Robson.

    Outros textos selecionados com certeza vão suscitar discussões que vão extrapolar o mundo acadêmico. Doniger, que é professora na Universidade de Chicago, completou a seção sobre hinduísmo antes de suas batalhas legais mais recentes com nacionalistas hindus na Índia em torno de seu livro "The Hindus: An Alternative History".

    Mas ela prevê que eles também se ofendam com alguns dos textos heterodoxos incluídos na antologia, que abrange um ensaio do escritor nacionalista Purushottam Nagesh Oak argumentando que o Taj Mahal, construído pelo imperador mogol muçulmano Sha Jahan, é realmente "um palácio hindu".

    Doniger disse que o texto é "uma piada de mau gosto". Mas, acrescentou, "faz parte de uma fação muito séria e destrutiva do hinduísmo contemporâneo".

    A editora da seção sobre o islã, Jane Dammen McAuliffe, ex-diretora do Bryn Mawr College, hoje trabalha na Biblioteca do Congresso e disse que prevê alguma discussão sobre os textos que selecionou, que incluem a declaração de jihad lançada por Bin Laden em 1998, "A Frente Islâmica Mundial". Os textos de feministas e moderados contemporâneos podem ser mais atraentes, mas, disse McAuliffe, deixar de fora "as vozes que realmente moldaram a agenda mais radical que está em ação no mundo islâmico hoje" teria sido "uma hipocrisia".

    A seção sobre judaísmo, editada por David Biale, da Universidade da Califórnia em Davis, mergulha em águas politicamente contenciosas com uma seção sobre o sionismo que inclui um texto do eminente filósofo e cientista israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-94), sionista e judeu ortodoxo que argumentou contra a atribuição de um sentido religioso ao Estado de Israel e disse que os soldados israelenses nos territórios ocupados corriam o risco de tornar-se "nazistas judeus".

    Mas, disse Biale, se existe algo realmente provocante na seção é o fato de ela se encerrar com um trecho do romance "O Avesso da Vida", de Philip Roth, que reflete sobre a circuncisão masculina como marca duradoura de identidade mesmo para um judeu "sem judaísmo, sem sionismo, sem caráter judeu".

    "O texto está ali para perguntar muito intencionalmente se tudo vai acabar em secularismo", disse Biale.

    O secularismo tornou-se um tema discutido acaloradamente no mundo acadêmico, com estudiosos debatendo se a secularização se define pela derrota da fé ou pela multiplicação de novas opções religiosas e espirituais.

    Essa pergunta também paira sobre a seção sobre cristianismo (editada por Lawrence S. Cunningham, da Universidade Notre Dame), que conclui com um trecho do livro de memórias do poeta americano Christian Wiman em que ele fala sobre converter-se do ateísmo para a prática cristã, mesmo que não necessariamente a crença.

    Esse espírito pós-moderno ambivalente fundamenta a antologia, cuja meta, escreve Miles, "não é a conversão, mas a pesquisa". Mesmo assim, ele espera que os leitores possam ter momentos como o que ele viveu com o "Sutra do Coração", um texto budista primitivo sobre o nada.

    "Para mim", disse Miles, "a leitura desse texto pela primeira vez foi um exemplo do que acontece quando um estudante de religião deixa de ser estudante e é pego desprevenido por algo que não procurava."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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