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    A Grande Guerra em romances (e um relato)

    MARCELO COELHO
    ilustração TATIANA BLASS

    23/11/2014 03h27

    RESUMO Além dos muitos relatos de não ficção e livros de história publicados ao longo do ano, centenário da Primeira Guerra enseja traduções de obras-primas de ficção sobre o conflito. Em chave satírica ou em relatos mais próximos da autobiografia, autores mostram que é possível comover sem ceder ao sentimentalismo.

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    A Primeira Guerra Mundial deu ocasião, neste ano em que se recorda seu centenário, a volumes de qualidade variada.

    Depois de diversos lançamentos de não ficção (muitos dos quais resenhados na edição de 20/7 da "Ilustríssima"), chegaram, no último mês, além de "14" [trad. Samuel Titan Jr., ed. 34, R$ 34, 136 págs.] -romance de qualidade apenas mediana do francês Jean Echenoz- duas obras-primas (e um punhado de relatos excelentes) sobre o conflito.

    "A Marcha de Radetzky" [trad. Luis S. Krausz, Mundaréu, 424 págs., R$ 31], do austríaco Joseph Roth, não aborda a guerra diretamente -o que é uma vantagem, porque o excesso de horrores e a imobilidade nas trincheiras pode produzir efeitos repetitivos, como acontece em "Tempestades de Aço", do alemão Ernst Jünger (Cosac Naify, 2013 ).

    O livro de Roth (1894-1939) é um dos quatro volumes inaugurais da coleção Linha do Tempo, cujas escolhas, promete a nova editora, buscarão capturar, via literatura, o espírito de determinados momentos históricos -nesta leva inicial, o da Primeira Guerra.

    Foto Eduardo Anizelli/Folhapress

    Contido, protocolar e melancólico, como os personagens que retrata, "A Marcha de Radetzky" cobre três gerações de uma família cujo último representante, o tenente Carl Joseph von Trotta, pensa em abandonar o Exército austro-húngaro nos dias imediatamente posteriores ao atentado de Sarajevo, em junho de 1914 -o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando levou, como se sabe, ao ultimato do Império Austro-Húngaro contra a Sérvia, precipitando um conflito que deixaria ao menos 10 milhões de mortos.

    Depois de anos sem fazer nada de concreto no Exército, a não ser contrair dívidas de jogo, arranjar uma ou outra amante e reprimir a bala uma manifestação de operários, o tenente Von Trotta vai comunicar ao pai, funcionário da burocracia imperial, sua decisão de abandonar a carreira militar.

    "'Sente-se!' disse o velho, apontando para a poltrona na qual Carl Joseph se sentava em seus tempos de aluno da escola de cadetes, aos domingos, das nove ao meio-dia, com o quepe sobre os joelhos e as luvas brancas sobre o quepe."

    Não poderia ser mais rígido e distante, como se vê, o relacionamento entre pai e filho. Roth continua: "'Pai!', começou Carl Joseph, 'vou deixar o Exército'. Ele esperou. Sentiu, imediatamente, que não seria capaz de explicar nada enquanto permanecesse sentado".

    O encanecido funcionário, cujos modos e feições imitam deliberadamente os do velhíssimo imperador Francisco José, reage mal. "'Depois da desgraça que nos aconteceu anteontem, uma saída do Exército como esta equivale a uma -a uma- deserção', disse o pai. 'O Exército inteiro desertou', respondeu Carl Joseph."

    O formalismo dos personagens, num diálogo em que nenhuma manifestação de afeto familiar é permitida, passa como um vento gélido por todo o romance. Vidas marcadas pelo respeito às honrarias, pela adoração da figura de um imperador distante e pela obediência silenciosa a regras sem sentido parecem criar as precondições para o desencadeamento de uma guerra bárbara -na qual os soldados austríacos se engajam mecanicamente, sem esperança, como num cortejo fúnebre.

    Mesmo amizades e casos amorosos se dão de forma encabulada, tímida, difícil. "A Marcha de Radetzky" traz uma sucessão de cenas memoráveis. Numa delas, o tenente Von Trotta faz uma visita de pêsames a um viúvo; tinha sido amante da morta. Em outra, o pai do tenente recorre ao próprio imperador, depois de enfrentar como um mártir todos os impedimentos da burocracia, para pedir uma ajuda financeira de emergência.

    Por fim, num feito extraordinário de intuição psicológica e social, Joseph Roth nos apresenta, em algumas páginas, como funcionam, já hesitantes e desenganados, os pensamentos íntimos do próprio imperador Francisco José.

    DECADÊNCIA

    Tudo dói em "A Marcha de Radetzky". Tudo também é doloroso -mas engraçadíssimo e adorável- na segunda obra-prima dessa safra de livros sobre a Grande Guerra. "As Aventuras do Bom Soldado Svejk" [trad. Luís Carlos Cabral, Alfaguara, 688 páginas, R$ 69,90], do tcheco Jaroslav Hasek, retrata a mesma decadência do Império Austro-Húngaro, de uma perspectiva inversa à adotada por Joseph Roth em "A Marcha de Radetzky".

    Aqui, é um modesto vendedor de animais de estimação em Praga quem conhecerá a estupidez militar e o absurdo da burocracia imperial nos primeiros tempos da Grande Guerra. Svejk é um prodígio de malandragem e ingenuidade comparável ao dos grandes personagens picarescos da literatura, de Lazarillo de Tormes ao brasileiro Macunaíma, passando por Sancho Pança. Seria um Sancho Pança num mundo sem quixotes, na verdade.

    A total obediência de Svejk às imposições da vida militar se mistura à irreprimível determinação de tirar o próprio corpo do campo de batalha. Desde o início do romance, seu comportamento é dos mais ambíguos -e cômicos. Com a Áustria declarando guerra à Sérvia, os habitantes das inúmeras nacionalidades sob o Império se veem obrigados a entrar em batalhas nas quais não têm interesse.

    Svejk, que havia sido expulso do serviço militar por "debilidade mental"(e juntas médicas igualmente imbecis o reexaminam ao longo da trama), sabe que será convocado para a guerra. Poderia alegar suas constantes crises de gota.

    A desculpa, porém, dificilmente funcionaria. Ele adota o procedimento inverso. Enfaixa-se, sobe numa cadeira de rodas, empunha uma muleta e, proclamando a suposta doença, percorre as ruas de Praga em busca do mais movimentado posto de alistamento militar.

    Os jornais -outra vítima do sarcasmo do socialista Jaroslav Hasek (1883-1923)- logo destacam a "atitude heroica" do valoroso cidadão. Ninguém haveria de dizer que ele tentava fugir do alistamento -embora, começamos a desconfiar, fosse exatamente esta a razão para a cadeira de rodas.

    Apesar da glória prematura, a vida de Svejk no Exército é uma sucessão de injustiças, vexames, presepadas e desencontros. Ele se torna ordenança de um capelão bêbado, cujos sermões em louvor da guerra vão do balbucio ininteligível ao mais cínico deboche.

    Surge no romance um segundo oficial, o tenente Lukas, cujo caráter essencialmente justo, mas falível, é apresentado com extraordinária leveza. As inocentes malandragens de Svejk -como roubar de uma empregada um cachorrinho para dá-lo de presente a seu superior- terminam impondo a ambos a pior das punições: a linha de frente no combate com os russos.

    Svejk e seus companheiros nunca entram em combate, todavia. Na história (que Hasek deixou inacabada), o que se vê é uma tropa em que tudo falta: comida, material, ordens claras; o próprio código secreto do Exército austríaco é uma piada -foi plagiado de um manual de guerra alemão, e os oficiais das tropas recebem a chave errada para decifrá-lo.

    A comida -escandalosamente melhor para os oficiais- é roubada. Os apetrechos de campanha, porque adquiridos em licitações fraudulentas, chegam imprestáveis ao front. Os soldados aproveitam qualquer missão para se embebedar. Aldeãs são estupradas. Casas se saqueiam sem que se saiba de que lado da fronteira estão -enquanto húngaros e tchecos, sob a mesma bandeira, se odeiam mais do que os inimigos a que devem combater.

    Tudo seria horrível, se Hasek não deixasse a imensa humanidade de seus personagens resistir, entre a pureza e a falta de caráter, ao maquinismo cego da guerra.

    A bonomia autointeressada de Svejk, com um sorriso tolo e sucinto nos lábios, é indissociável das ilustrações cômicas de Josef Lada, presentes em várias edições desde que o livro apareceu pela primeira vez, em 1921. A tradução brasileira, infelizmente, preservou apenas na capa um exemplo daquelas obras-primas do traço cômico.

    BARBÁRIE

    Sem nenhuma comédia, mas sem nenhum exagero dramático tampouco, "Um Ano Sobre o Altiplano" [trad. Ugo Giorgetti Mundaréu, 208 págs, R$ 29], do italiano Emilio Lussu, é um texto de não ficção, cujo triste e sereno olhar sobre a barbárie lembra os relatos de Primo Levi (1919-87) acerca dos campos nazistas.

    Na campanha italiana de 1916 contra os austríacos, o menor sinal de "covardia" é punido com fuzilamento; em tese, nada de estranhar em se tratando das emergências de uma guerra. O problema é que os soldados são forçados a avançar para as trincheiras inimigas sem cobertura dos canhões de artilharia -que simplesmente não chegaram. Os alicates para cortar a cerca de arame farpado do inimigo não cortam nada. Enquanto tentam romper a barreira, os italianos são dizimados por metralhadoras.

    Um general obstinado e imbecil dá o tom das empreitadas. Pergunta a um punhado de combatentes se conseguem ver o que está escrito na lâmina das baionetas. Ninguém vê nada nelas, exceto sinais de ferrugem. O general responde com solenidade. "Uma palavra está escrita aqui: vitória!"

    O ridículo do pronunciamento não escapa a ninguém, embora o autor não acrescente nenhum comentário. Neste livro publicado em 1938, quando Lussu (1890-1975) estava exilado em Paris pelo fascismo, os silêncios são tão importantes quanto o que se diz.

    O general, a quem não falta coragem, sobe a um posto de observação fortificado. Pode-se ver a trincheira inimiga através de uma mínima fresta na estrutura. Os comandados sabem que um atirador exímio acerta sempre no olho de quem se aproxima da fresta. O general se aproxima para inspecionar. Ninguém o avisa: secretamente, torcem para que ele seja morto.

    Ao mesmo tempo, Lussu reproduz uma discussão entre os soldados: se a guerra é sem sentido, não seria melhor se todos se rendessem? Ser subjugado pelo Império Austro-Húngaro, concorda a maioria, seria, porém, pior ainda.

    TRANSFORMAÇÃO

    Com menos desencanto íntimo, o poeta inglês Siegfried Sassoon (1886-1967) narra, em "Memórias de um Oficial de Infantaria" [trad. Luís Reyes Gil, Mundaréu, 328 págs., R$ 33], sob um tênue véu de ficção, sua transformação.

    No início, Sassoon encara a guerra com a galanteria de um "sportsman" britânico, acostumado a gastar seu vasto tempo livre em caçadas à raposa. Condecorado por bravura -devido a participações que ele narra com também britânica modéstia-, Sassoon aos poucos se convence da inutilidade do conflito. Conhece um influente militante pacifista (o filósofo Bertrand Russell) e decide publicar um manifesto no qual pede explicações para o morticínio.

    Não fosse ele um herói de guerra, o teriam condenado ao pelotão de fuzilamento. Como o "jeitinho" não é peculiaridade brasileira, arranjaram-lhe um atestado de insanidade, enviando-o a uma clínica psiquiátrica -aliás liderada por um médico importante e admirável no tratamento dos recém-descobertos traumas de guerra.

    Sanidade e equilíbrio não faltavam a Sassoon, como não faltavam a Roth, Hasek e Lussu. Quatro autores capazes de mostrar, de diferentes perspectivas, a irracionalidade da guerra sem cair no sentimentalismo -muito menos nessa outra forma de sentimentalismo, bastante em voga, que é a de render-se à histeria apocalíptica diante do inominável, do indizível, do que não pode ser escrito.

    MARCELO COELHO, 55, é colunista da Folha e autor de, entre outros, "Cine Bijou" (Cosac Naify).

    TATIANA BLASS , 35, é artista plástica.

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