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    Katherine Boo fala sobre comunidade em Mumbai que inspirou seu livro

    JAN DALLEY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    23/11/2014 03h40

    A escritora viveu em uma favela de Mumbai ao pesquisar para um livro sobre as vidas de seus moradores

    Você já tentou arrancar o revestimento plástico interno de uma tampa de garrafa de cerveja? É uma tarefa horrorosa, capaz de quebrar unhas. Mas Abdul, um dos moradores adolescentes de um cortiço em Mumbai cuja vida é documentada em "Em Busca de um Final Feliz" (Novo Conceito, 2013), livro de Katharine Boo, ganha a vida com essa e muitas outras tarefas igualmente dilacerantes –hora após hora e dia após dia, revirando lixo até que tenha conseguido material suficiente para vender por algumas rúpias. Ele sustenta 11 pessoas.

    "Sim, é realmente difícil fazer aquilo, com as tampas de cerveja, não é? Na realidade, é uma verdadeira arte", diz Boo, rindo, quando nos acomodamos em nosso reservado em um canto do Pizza Express perto da estação ferroviária Waterloo, em Londres. "E agora, atores têm de fazer isso a cada noite no palco do National Theatre!"

    O trabalho de Boo, que conquistou o National Book Award em 2012 na categoria não ficção, foi adaptado para o palco pelo dramaturgo David Hare e dirigido por Rufus Norris, que em breve assumirá a direção geral do National Theatre. A produção acaba de estrear em pré-temporada, e será transmitida ao vivo para 550 salas de cinema em março do ano que vem.

    Annawadi é uma "subcidade" de cerca de três mil moradores em uma faixa pantanosa e fedorenta ao lado do novo e reluzente aeroporto de Mumbai, e vive à sombra das torres dos hotéis de luxo. Lá, os detritos dos ricos da cidade oferecem sustento a pessoas que enfrentam enormes dificuldades para sobreviver. Ver as pessoas que ela conheceu naquele lugar trazidas à vida em um palco do principal teatro londrino foi uma experiência poderosa para Boo.

    Indranil Mukherjee - 28.fev.2012/AFP
    Moradores da favela Annawadi em Mumbai, que é retratado no livro "Em Busca de um Final Feliz", de Katherine Boo
    Moradores da favela Annawadi em Mumbai, que é retratado no livro "Em Busca de um Final Feliz", de Katherine Boo

    "Sinto-me muito conectada aos garotos que estão sendo representados", ela admite. "O que está acontecendo aqui está acontecendo a centenas de milhões de pessoas que precisam encontrar seu caminho nessa era volátil de mercados mundiais, e por isso é espantoso ver a cena em um palco. A peça decididamente não está sob meu controle, mas o senso de completa instabilidade, a intensidade das amizades, a forma pela qual a vida pulsa repleta de energia, não só para sobreviver mas para conquistar algo melhor –tudo isso está lá".

    Tipicamente, sua resposta inicial à proposta de Hare foi voltar a Annawadi e perguntar aos moradores o que achavam da ideia. "Eles foram receptivos. Existe uma tradição vernácula de teatro de rua, teatro de favela. Muitas das pessoas sobre as quais estou escrevendo não são alfabetizadas, e por isso livros nada significam para elas. Mas uma peça é algo que elas compreendem. Por isso, lhes dei algum tempo para pensar a respeito, e conversar a respeito, e eles aceitaram. Parte do acordo era que David [Hare], Rufus [Norris] e outras pessoas fossem a Annawadi para conversar com o pessoal, conhecê-los, e absorver tudo".

    "O engenheiro de som foi, o diretor de arte, o ator do Sri Lanka que interpreta Sunil [um dos meninos que trabalham como catadores de lixo] –e o resultado é extraordinário. Há muito no palco que saiu diretamente da vida –movimentos, gestos, detalhes", ela diz.

    "Não os acompanhei. Não queria estar na posição de apresentar a eles a 'minha' favela, o meu pessoal. Queria que eles vissem o lugar por si sós. Mas as pessoas me contam sobre as visitas quando volto a Annawadi", diz Boo.

    O garçom está parado à beira da mesa. Para ela, o almoço será uma pizza "Pollo ad Astra", com carne de frango e tempero cajun, e para mim uma "rustichella", com, ao que parece, pancetta, mozzarella e (estranhamente) molho de salada. Nós duas pedimos Coca diet.

    "Sunil está com inveja –estamos almoçando pizza", ri Boo. O Sunil de que ela fala é Sunil Khilnani, seu marido, escritor e historiador que ela conheceu quando dirigia o programa de estudos do sul da Ásia na Escola Johns Hopkins de Estudos Internacionais, em Washington, a cidade na qual ela nasceu em 1964. Khilnani agora ocupa a cátedra Avantha de política e dirige o Instituto da Índia no King's College de Londres, e os dois têm uma casinha no sul da capital britânica, que serve de base às suas vidas de permanente movimento. No dia de nosso almoço, Khilnani acabava de chegar de um mês de trabalho na Índia, e Boo havia retornado recentemente de uma visita à família em Washington.

    Nascida em Minnesota, a família de Boo se mudou para Washington, onde o pai dela era funcionário federal. Uma forte consciência social parece orientar a todos eles: seus dois pais, diz Boo, fizeram parte do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos já a partir dos anos 40. Um de seus irmãos, médico, trabalhou por anos combatendo o HIV na África, e sua irmã trabalha para ajudar crianças severamente traumatizadas a trocar lares pagos pelo governo por lares adotivos receptivos.

    Mas foi quando se apaixonou pelo marido, diz Boo, que ela descobriu todo um novo país. Sua primeira visita à Índia foi em companhia dele, em 2002, mais ou menos na época em que a conheci. E –cabe a revelação– somos amigas desde então, embora essa amizade seja necessariamente esporádica. Do final de 2007 a 2011, ela passou boa parte de seu tempo em Annawadi, descobrindo as vidas de seus moradores de muito perto, e encontrando maneiras de mostrar ao mundo afluente os sacrifícios quase inimagináveis que a vida diária requer em um lugar como esse.

    O livro que surgiu dessas experiências parece quase um romance, uma teia absorvente e dramática de histórias que incluem brutalidade policial, corrupção das autoridades, violência súbita e chocante e sempre o suor e o fedor inesgotáveis da sobrevivência. Boo não se insere no relato, e o brilhantismo de seu texto está nos detalhes que ela faz por inscrever nas memórias dos leitores: jamais verei da mesma maneira as bandejas de alumínio em que as refeições são servidas em aviões depois de saber que elas servem como troféus pelos quais um menino catador de lixo enfrenta o risco de uma surra da segurança aeroportuária.

    Se a escritora repleta de empatia que existe em Boo transmite esses personagens em toda sua vivida humanidade, a repórter investigativa –ela faz parte da equipe da revista "New Yorker" desde 2003– também persiste em encarar um sistema burocrático pavoroso em busca de milhares de documentos que servem de prova sobre as incontáveis misérias cotidianas e as tragédias esquecidas de Annawadi.

    É essa combinação de empatia e objetividade que valeu elogios internacionais ao livro, bem como prêmios da PEN, do "Los Angeles Times", da Biblioteca Pública de Nova York e da Academia Americana de Artes e Letras, além do National Book Award.

    Seu histórico de passados sucessos demonstra o mesmo persistente compromisso de investigar a pobreza, até no rico país de que ela provém. Boo conquistou um prêmio Pulitzer de serviço público em 2000 por uma série de reportagens no "Washington Post" sobre abusos e negligência em lares para pessoas com deficiências de aprendizado. E em 2002 ela recebeu uma bolsa MacArthur e um prêmio Hillman, por trabalho jornalístico que promove causas sociais, com um artigo intitulado "After Welfare", para a "New Yorker". Em 2004, ela conquistou um National Magazine Award na categoria reportagem longa, por um artigo para a "New Yorker" intitulado "The Marriage Cure", sobre um programa cujo objetivo era reduzir as desvantagens sociais em um complexo de habitação pública no Oklahoma por meio da promoção do casamento.

    Como todos os demais trabalhos de Boo, "The Marriage Cure" é uma leitura absorvente, e ela mergulha nas vidas das pessoas de quem está falando sem exibir uma gota de condescendência ou sentimentalismo barato. Foi esse artigo, ela diz, que levou seu marido a observar que ninguém estava escrevendo sobre a pobreza na Índia da mesma forma que Boo estava fazendo sobre a mesma situação nos Estados Unidos.

    A essa altura, os restos de nossas pizzas já estavam desagradavelmente frios, e só fingíamos comer os pedaços que apanhávamos com as mãos. Com as mãos? Esse é parte do motivo para que Boo optasse por comer pizza no almoço. Desde a adolescência, ela sofre de uma doença do sistema imunológico que resultou em dificuldades crescentes em suas juntas e múltiplas cirurgias; um dos efeitos do problema é que ela tem dificuldades para lidar com talheres –e muita coisa mais. "Quando eu lia as entrevistas da seção almoço com o Financial Times, sempre imaginava que isso era algo que eu não poderia fazer, porque o entrevistador ficaria reparando que eu estava derrubando a comida".

    Boo, pequenina, frágil e dona de um sistema imunológico que pouco a ajuda, dificilmente pareceria a pessoa ideal para um ambiente como o de Annawadi, onde a tuberculose grassa e os riscos da vida cotidiana incluem o de queda em um lago de esgoto tóxico –o que aconteceu com ela. Mas Boo descarta casualmente a ideia de que seja especialmente corajosa. "Sou melhor quando tenho um propósito. Ainda que se eu soubesse, ao começar, que o projeto demoraria tanto e envolveria tanta ansiedade, talvez não tivesse realizado o trabalho. Foi muito difícil!"

    Para alguém cujo método de investigação sempre foi, como ela diz "me fazer invisível", seu cabelo loiro claro e pele branquíssima devem tê-la tornado quase um ser de outro planeta. Como é que os moradores de Annawadi a receberam? "Bem, todos eles tinham suas vidas a conduzir, e meu valor como distração diminuiu depois de uns dois meses. Eu não era assim tão interessante. Durante muito tempo, não tive um tradutor –era um trabalho horrível para um tradutor–, e por isso fiquei sozinha com eles, e tínhamos de encontrar maneiras de nos comunicarmos".

    "Parte do que você precisa fazer em uma situação de reportagem é deixar claro que sua função é estranha, que você precisa compreender a vida da pessoa sobre a qual está escrevendo, e as escolhas que ela faz. E as pessoas entendem, entendem perfeitamente", diz Boo.

    "Mas muitas das pessoas sobre as quais escrevo não estão acostumadas a falar de suas vidas, e por isso muitas vezes o melhor para mim era só observar –assistir enquanto Abdul virava as bonecas Barbie encontradas no lixo com os peitos para baixo. É melhor observar o que eles fazem do que perguntar por que o fazem", diz Boo.

    As pessoas respondiam a ela com tranquilidade, talvez, porque percebiam as dificuldades que ela enfrenta?

    "Não intimido as pessoas com minha presença. Era comum eles me chamarem de 'Uma Perna' [o apelido de uma das pessoas que servem de tema ao livro], e as pessoas sempre brincavam comigo sobre minhas cicatrizes, e diziam que meu marido devia ser um pamonha, por ter se casado com uma mulher defeituosa". Ela volta a rir com animação.

    Quando pergunto se a experiência daqueles anos todos no cortiço a mudou, Boo parece por um momento ficar sem palavras. "Bem, no mínimo me envelheceu", ela diz, rindo, e depois de uma longa pausa acrescenta: "Deixou-me mais triste. Mas não sei se mais sábia". Depois de mais uma pausa, ela comenta: "Não sou tão introspectiva assim, sabe?"

    E é verdade que o foco de seu trabalho está sempre nas pessoas que lhe servem de tema, e não nela. Todos os projetos em que ela se envolve deixam alguma coisa de positivo –Boo me conta que uma das mulheres do Oklahoma sobre quem ela escreveu leu seu livro a respeito de Annawadi e disse que reconhecia experiência suas também nele. "Isso é algo de extraordinário. Diversas das pessoas sobre quem escrevi no passado agora perguntam sobre Abdul e os demais, como se os conhecessem; existe um grande senso de identificação entre as pessoas de baixa renda, através das culturas e das fronteiras".

    A pergunta que mais desejo fazer, talvez, é como ela vê os efeitos de seu jornalismo dedicado a causas. Será que escrita como a dela pode realmente promover mudança? Ela responde com cuidado, de forma realista. "Há sempre uma voz em minha cabeça me perguntando qual é o propósito do que faço. Mas digo a mim mesma que o que faço é válido. É válido registrar que a polícia classifica homicídios como mortes caudadas pela tuberculose porque não quer perder tempo investigando sobre aquelas crianças. Tantas coisas assim. O trabalho precisa ter uma dimensão investigativa, para unir as observações em um todo coerente".

    As pizzas são enfim retiradas, e nossos cafés chegam. Pergunto a Boo sobre sua dedicação continuada a Annawadi. "Quando o dinheiro do livro começou a entrar", ela explica, "perguntei às pessoas o que desejavam. E uma das coisas surpreendentes –algo sobre o qual eu nem fazia ideia– foi que elas queriam um cartão Aadhaar, a nova carteira de identidade indiana. Sem ela não se pode fazer nada, e as autoridades podem excluir os favelados das escolas e até dos hospitais públicos. Também organizamos centenas de bolsas para escolas privadas, cursos particulares e cursos de treinamento, bem como tratamentos médicos e outras coisas".

    "E é nesse ponto que eu deveria dizer que eles viveram felizes para sempre. Mas não é verdade: a batalha continua", ela diz. Por exemplo, depois de colocar dez crianças na melhor escola particular da região, Boo e o marido voltaram a Annawadi este ano e para conseguir vagas para mais 12 crianças. Mas os pais afluentes não queriam que seus filhos convivessem com os favelados, e a escola os recusou no último minuto. "Tivemos de literalmente nos plantar na porta e suplicar que a escola deixasse as crianças entrar. Sunil e eu não somos ingênuos, mas a resistência encontrada foi realmente um abalo."

    Em outros momentos, problemas estruturais sabotam o desejo individual. Depois de colocar 36 adolescentes em um programa de aprendizado intensivo de inglês –uma competência procurada nos hotéis do aeroporto– surgiu uma escassez de água em Annawadi. "Os alunos não conseguiam tomar banho, e por isso não iam à aula porque ficavam com vergonha de cheirar mal."

    "Além de todas as outras coisas que é preciso enfrentar, você opera em um mundo no qual as pessoas mais ricas o tratam com desprezo. Um dos catadores de lixo me disse que 'sinto que sou um insulto'. Esse entranhamento do desprezo alheio limita o que uma criança vê como possível".

    A esperança é um instrumento político, Boo acredita, mas também uma realidade. No seu livro, e em suas conversas, ela sempre enfatiza os sonhos e aspirações que encontra até mesmo na mais imunda favela.

    Quando sugiro que ela mudou as vidas de muita gente, Boo responde que "está bem, é possível mudar vidas individuais, mas você também está tentando falar de estruturas. Talvez uma pessoa possa fazer uma pequena contribuição, mostrar algo a quem esteja trabalhando quanto a questões de desigualdade que permita que essa pessoa apanhe um livro e aponte para um exemplo concreto".

    "Mas que isso faça algum bem é só uma pequena esperança. No entanto, se o público mais amplo nunca for informado a respeito, até essa pequena esperança poderia desaparecer."

    Jan Dalley é editora de artes do "Financial Times"

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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