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    Sobrevivemos ao ebola e a seu estigma, mas a vida é dura

    BINTU SANNOH
    DO "OBSERVER"

    23/11/2014 03h00

    Cinco semanas depois de aparecer na primeira página do "Observer" quando saiu de seu vilarejo, atingido pelo ebola, Bintu Sannoh descreve o sofrimento que chegou depois

    O ebola já deixou de ser um nome estranho para nós. Sua marca é visível por toda parte. Onde quer que você olhe, pode ver o vírus e como ele afeta tudo em que encosta. A comunidade onde eu vivia, na rua Aruna, sofreu muito com o ebola. E a dificuldade é maior para pessoas como nós. Quando disseram à minha tia que ela ia sobreviver ao ebola, achamos que éramos abençoados. Isso foi sete semanas atrás. Mas na comunidade, o simples fato de ela ter sido atingida pela doença virou uma maldição.

    A comunidade tinha medo de nós. As pessoas diziam que éramos a "família do ebola" e me chamavam de Ebola Girl. Eu sentia vergonha. Meus irmãos, também. É difícil viver num lugar onde você sente que todo o mundo está falando sobre você. Disseram às outras crianças para não chegar perto de nós e nunca tocar em nós. Se chegávamos perto deles, nos mandavam embora e gritavam para irmos para longe, porque tínhamos ebola. E tudo isso porque minha tia é uma das poucas pessoas que sobreviveu à doença. Eu me escondia dentro de casa. Mesmo no passado, quando senti dor de tanta fome, eu não sofri tanto quanto sofria ao ouvir as coisas que falavam sobre nós. Ninguém quer ser uma "menina ebola". O tratamento foi tão horrível que tivemos que nos mudar de lá.

    Não faz muito tempo, ouvi no rádio que o governo em Freetown está dizendo que os sobreviventes do ebola devem ser vistos como heróis especiais.

    Avener Prado - 15.ago.2014/Folhapress
    Freetown, capital de Serra Leoa
    Freetown, capital de Serra Leoa

    Até o presidente estava tratando os sobreviventes com respeito. Mas lá onde moramos (no leste do país), não era essa a impressão. Freetown parecia estar muito longe.

    Meu pai nos deixou muito tempo atrás, mas não sei por quê, diante de todos nossos problemas, achei que talvez ele voltasse, por mim e por meus irmãos. Mas ele não veio. E não nos mandou nada. Se não fosse pelos pacotes de ajuda que recebemos da organização beneficente Street Child, não sei como teríamos sobrevivido. Quando a quarentena foi levantada, finalmente pudemos sair de lá e nos mudamos para Dauda Town.

    Pelo que estamos ouvindo no rádio, o número de pessoas com ebola está diminuindo nesta parte do país, mas ouço dizer que ainda está aumentando em outras regiões. Mas Kenema ainda está em quarentena. O movimento de pessoas ainda é restrito.

    A luta verdadeira é o dia a dia, tentando ganhar dinheiro para comprar comida. Muitas das atividades de costume estão paradas. Embora minha tia esteja forte outra vez, ela não pode fazer muito por nós. Antes de ficar doente, ela ganhava a vida vendendo tapioca, mas usamos todo o dinheiro que ela tinha para comer, e ela ainda não conseguiu reiniciar seu negócio. Em todo caso, a feira onde ela comprava a tapioca para revender foi fechada -as reuniões públicas foram proibidas.

    Estamos tentando ganhar um pouco de dinheiro com uma horta no quintal, cultivando folhas de batata e vendendo-as pela comunidade. Mas muitas outras pessoas estão fazendo a mesma coisa. Posso passar o dia vendendo folhas de batata e só ganhar mil leones (R$0,65).

    Se minha tia não receber ajuda para abrir seu negócio outra vez, como vai poder cuidar sozinha de mim e de nossa família? Quem vai nos sustentar para que possamos voltar às aulas quando as escolas reabrirem? Já perdi um semestre de aulas, e ainda estamos esperando. Ninguém sabe quando as escolas vão voltar a funcionar.

    Mas as pessoas estão começando a saber mais sobre essa doença, e isso facilita as coisas para uma família como a nossa. Se as pessoas entenderem um pouco mais, serão menos cruéis com quem foi atingido pela doença.

    Ninguém aqui nos chama de "família ebola". A vida voltou a trazer alguma esperança de que as coisas melhorem. Mesmo que não vejam minha tia, sobrevivente do ebola, como heroína, pelo menos posso me alegrar porque não me chamam mais de Ebola Girl.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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