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    Comunidade de devotos foi destruída em 1937

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    fotografia ISADORA BRANT

    30/11/2014 03h02

    Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), em gesso ou carne e osso, é um homem poderoso. Poucas são as casas a não ostentar uma estátua do "padim" no sertão cearense. Na década de 1920, feito santo vivo, convocou o fã Lampião para expulsar a coluna Prestes de Juazeiro do Norte.

    Ao conhecer José Lourenço, penitente negro e paraibano, em 1894, viu algo ali. Fez dele seu seguidor. Coube ao discípulo criar uma comunidade de devotos nos arredores do Crato.

    Criminosos, prostitutas e solteiras desvirginadas juntaram-se a seus romeiros. O grupo cultivava hortaliças e crenças como a do "boi mansinho" -animal "milagreiro" presenteado por Cícero. "Diziam que curava doença. 'Pega o cocô do boi para fazer chá e você fica bom'", diz a secretária de Cultura do Crato, Dane de Jade.

    Isadora Brant/Folhapress
    Romaria pelas "almas da barragem"
    Romaria pelas "almas da barragem"

    Não demoraria até que a "nova Canudos" assustasse a elite cratense. Logo cortaram a carne do boi e as asas de José Lourenço. A comunidade se desfez.

    Em 1926, o beato começou tudo de novo, em nova área cedida por Cícero: o Caldeirão da Santa Cruz. Na estiagem de 1932, o lugar virou refúgio para fugitivos do campo de concentração do Crato.

    "Cansei de ouvir a mãe dizer que, na seca, o beato deu comida para 5.000 pessoas", diz seu Raimundo, que recebe R$ 620 do município para ser o zelador do que restou do Caldeirão (uma igreja e ruínas da casa de Lourenço).

    Sob o lema "tudo é de todos e nada é de ninguém", José Lourenço cheirava a fartura para retirantes, e a comunismo para coronéis. "Fanáticos" reunidos representavam uma ameaça. Espalharam boatos de que o beato era devoto da cachacinha e mandava meninas passearem a passos largos no sótão, para que pudesse ver "suas partes" por frestas do chão.

    Em 1937, as Forças Armadas bombardearam o lugar. Muitos moradores já tinham fugido dali. Os que ficaram foram massacrados -sobreviventes falam de centenas de mortos. José Lourenço morreria de peste bubônica nove anos depois, em Exu, Pernambuco.

    "Se o beato era santo?", pergunta Raimundo. O cratense que, em 71 anos, viajou no máximo até Juazeiro, ajeita o boné com os dizeres "New York City" e troca os chinelos de dedo remendados por um par de galochas. "Só quem sabe é Deus, né, não? Mas foi um homem muito inteligente. Será que esperando por Deus nós cansa?"

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER, 27, é jornalista da Folha. Assina o blog "Religiosamente" no site do jornal.

    ISADORA BRANT, 28, é repórter fotográfica da Folha e produz, em sua Vibrant Editora, publicações independentes, como zines e fotolivros.

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