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    Arquivo Aberto - Um presente de Vinicius

    ALAÍDE COSTA

    07/12/2014 03h36

    Rio de Janeiro, 1961

    Em 1961, quando eu ainda morava no Rio, surgiu a oportunidade de fazer aulas de piano com o Moacir Santos. As aulas eram dedicadas, predominantemente, ao estudo de harmonia. Estudei por mais ou menos seis meses, mas deu para aprender muita coisa, tive uma base muito boa, fundamental para as minhas composições. Fazia as aulas na casa do Moacir e, como era perto da casa do Vinicius de Moraes, um grande amigo, sempre dava uma passadinha para praticar no piano do Vinicius.

    Acontece que o Moacir, com o sucesso da bossa nova nos Estados Unidos, decidiu deixar o Brasil, e eu fiquei sem professor. Como já tinha avançado nos estudos e não podia parar, o Moacir sugeriu que eu comprasse um dos pianos dele -eram dois: um para o professor, um para os alunos. Isso seria impossível, eu não tinha dinheiro.

    João Correia Filho
    A cantora e compositora carioca Alaíde Costa com seu piano em sua casa, na cidade de São Paulo, em 2009
    A cantora e compositora carioca Alaíde Costa com seu piano em sua casa, na cidade de São Paulo, em 2009

    Tinha começado a minha carreira profissional havia poucos anos, como "crooner" do Dancing Avenida e do Dancing Brasil. Já tinha até lançado o meu primeiro disco, em 1957, um 78 rotações: de um lado "Tarde Demais" -de Hélio Costa e Anita Andrade, dois jovens compositores que me viram cantando no Dancing e me ofereceram essa canção- e do outro lado "C'est la Vie" -na versão de Aloysio de Oliveira. Mas o dinheiro ainda era pouco.

    O Moacir pensou numa solução: "Por que você não fala com o Vinicius? Ele compra o piano, que eu preciso vender antes de ir para os Estados Unidos, e depois você vai pagando a dívida aos poucos". Vinicius era muito amigo meu, mas eu morria de vergonha de pedir esse favor. Seria abusar da amizade. Como eu não tomei essa atitude, o Moacir resolveu falar com o Vinicius diretamente.

    Vinicius, como era de se esperar -um coração enorme e algum dinheiro no bolso-, comprou o piano e, de quebra, tomei uma bronca daquelas: "Como você não falou comigo? Que absurdo! O Moacir teve que falar comigo, precisava disso? Não somos amigos?". Enfim, piano comprado, só faltava pagar ao Vinicius.

    Toda vez que eu me encontrava com ele ficava constrangida, não por ele, que continuava o mesmo. É que eu queria pagar logo a dívida, mas o dinheiro que entrava era insuficiente. Passaram-se alguns meses, e eu não tinha conseguido quitar nenhuma parcela. Aí eu ficava sem graça, a ponto de nem querer vê-lo. "Ai, Vinicius, você me desculpe, ainda não consegui juntar o dinheiro."

    Eu sempre me preocupava em lhe dar alguma satisfação. "Ai, Vinicius, assim que eu conseguir eu lhe pago, pode ter certeza". Quase um ano depois, tudo do mesmo jeito. Eu e as minhas justificativas, absolutamente verdadeiras -os shows mal davam para meus gastos.

    Até que um dia, depois de mais um pedido de desculpas, Vinicius me disse de supetão: "Não quero mais ouvir falar no diabo desse piano! O piano é seu!". Demorei a aceitar, mas não tinha nada que o fizesse mudar de ideia.

    É nesse piano que, até hoje, toco e crio as minhas canções, que, depois de décadas, foram reunidas no meu mais recente disco, "Canções de Alaíde", com parceiros ilustres: Tom Jobim, Johnny Alf, Hermínio Bello de Carvalho, Geraldo Vandré. E, claro, Vinicius de Moraes, com quem fiz "Amigo Amado". Amigo amado a quem sou eternamente grata.

    ALAÍDE COSTA, 78, cantora e compositora carioca. Com 60 anos de carreira, lançou neste ano seu primeiro álbum autoral, "Canções de Alaíde" (Nova Estação) e faz shows no Sesc Ribeirão Preto (28/1) e Sesc Santo André (31/1).

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