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    Sócrates, um jogador que sintetizou o Brasil

    FRANCISCO ALAMBERT

    14/12/2014 03h14

    RESUMO Biografia e filme sobre a democracia corintiana põem em relevo a figura do futebolista Sócrates, morto há três anos. Retrato que surge do ídolo dos anos 1980, um atleta fumante, bebedor e politizado, autodefinido como "maluco", é o de uma personalidade que, em suas contradições, se tornou simbólica do país.

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    Na biografia escrita por Tom Cardoso, Sócrates é apresentado no subtítulo como o "mais original" dos jogadores de futebol brasileiros. Não está errado, mas não é bem assim. Originais muitos foram -de Friedenreich a Pelé, de Heleno de Freitas a Dadá Maravilha. Geniais e geniosos, também. "Perturbador" seria um termo mais apropriado segundo cartolas, dirigentes ou torcedores. "Apaixonado" foi como Washington Olivetto o definiu. "Maluco" parece que era a forma como o próprio jogador melhor se entendia.

    Ao final de "Sócrates" [Objetiva, R$ 29,90, 264 págs; R$ 19,90, e-book], tudo isso e muito mais surge para o leitor atordoado por tantos movimentos conflitivos, empolgantes, quase inacreditáveis, em uma curta vida de 57 anos. Movimentos de uma personalidade que parece ter trazido para si todas as contradições de seu tempo. Sócrates (1954-2011) foi um enigma que nem ele decifrou; viveu uma coleção de paradoxos "socráticos" cuja racionalidade nunca se converteu em paradigma. Nós nos atordoamos diante de tanta coragem, tanta ousadia, tanta (ir)responsabilidade, tantas idas e vindas.

    Jorge Araújo - 14.dez.1983/Folhapress
    Abraçado a Casagrande, Sócrates comemora, com o habitual braço erguido, a conquista do Campeonato Paulista pelo Corinthians, em 1983
    Abraçado a Casagrande, Sócrates comemora, com o habitual braço erguido, a conquista do Campeonato Paulista pelo Corinthians, em 1983

    Escrever sobre tal personalidade é um desafio. Tudo é tão inacreditável que facilmente poderia virar uma coleção de bizarrices sensacionalistas. E o material é farto. Cardoso escolheu um caminho respeitoso, mas sem concessões (ainda que a ordem da escrita seja penosa, repleta de repetições e volteios às vezes irritantes).

    É louvável que, numa época em que artistas ou esportistas e seus familiares resolveram censurar as biografias, esta possa fluir tão livremente, tão ao gosto despudorado de seu biografado.

    Tudo aquilo que poderia tentar explicar Sócrates, sua trajetória e suas opções, se configura através de estranhos espelhamentos em que a imagem ora está invertida, ora se deforma voluntariamente.

    Ele recebeu de seu pai (um cearense caixeiro-viajante, leitor de filosofia, gênio dos concursos públicos e que foi a consciência moral de seu filho) o nome do "pai da filosofia". E ele foi filósofo, em sentido clássico, embora tenha preferido a medicina de Hipócrates. O doutor amou igualmente Pelé, música sertaneja, Gramsci e Fidel Castro. Comemorava gols fazendo o gesto dos Panteras Negras norte-americanos. Amou e também odiou todos os clubes em que jogou, inclusive o Corinthians, e foi alvo de sentimentos semelhantes também por parte dos torcedores desses clubes.

    Seu último grande espelhamento foi com seu irmão caçula, Raí. Sócrates certa vez definiu o irmão ao mesmo tempo que tentava definir a si mesmo: "Sou agressivo, ele não. Sou extrovertido, ele não. Gosto de estar com gente, de trocar experiências, de conviver com todo tipo de ser humano, e ele já tem mais dificuldade, gosta de estar só, de curtir sua genial sensatez, isolado e tranquilo -nada de confusão. Por isso, ele é São Paulo e eu, Corinthians".

    Como tudo em Sócrates, a ideia é brilhante, mas igualmente marota. Porque ele também podia "ser São Paulo" (aliás, foi sobretudo para evitar que o jovem Sócrates, em 1977, fosse contratado pelo tricolor que Vicente Matheus o levou para o Corinthians, iniciando a mais turbulenta relação entre um atleta e um dirigente no futebol brasileiro), tanto quanto pôde detestar "ser Corinthians" em vários momentos de sua vida.
    Mas ele sempre "foi Corinthians", em sentido utópico: apaixonado, voltado para as massas, sonhando a democracia popular. Morrer no dia em que esse time ganhava um título foi apenas mais um dos seus espetaculares espelhamentos paradoxais.

    DEMAIS

    Sócrates era alto demais, magro demais, tinha os pés pequenos (algum dia um cientista ou antropólogo ainda há de explicar o mistério da genialidade dos jogadores de pés pequenos). E era inteligente demais.

    Desde os tempos de seu início de carreira, no Botafogo de Ribeirão Preto, o jovem estudante de medicina, que fumava até durante as partidas, aprendeu a jogar no lado do campo em que havia sombra, a se mover lentamente, a dar passes sem alterar muito o corpo. Tudo isso contribuiu inesperadamente para que ele reinventasse a geometria sempre imprecisa do futebol. A marca distintiva dessa capacidade de recriação do corpo e do espaço foi a sua habilidade em jogar com o calcanhar como ninguém jamais havia feito.

    Sócrates foi o mais "cool" dos jogadores, portanto. O desenho econômico dos seus movimentos e o planejamento de suas jogadas apresentavam soluções sintéticas e arquitetônicas que quase definiam um gênero.
    João Gilberto, que reinventou a música popular cantada na época em que Sócrates nasceu, colocou o jogador no seu famoso rol de obsessões. Ele achava que Sócrates era a saída para o futebol brasileiro. E, pensando bem, a relação entre esses dois gênios é evidente. Sócrates foi o mais "bossa nova" dos atletas (inclusive por sua constante identificação com a esquerda "festiva"). Se João Gilberto sintetizou a bateria das escolas de samba em sua mão direita e a orquestra sinfônica em sua mão esquerda, Sócrates sintetizava o desconserto de Garrincha com a precisão de Pelé.

    As passagens em que se narram os intermináveis telefonemas noturnos que o músico dirigia ao cantor Fagner (amigo íntimo de Sócrates) pedindo para que este interferisse quanto às decisões do jogador nas copas de 1982 e 1986 são significativas dessa identidade construída entre os dois inventores. Sintomaticamente, após uma longa conversa telefônica, Fagner teria perguntado a Sócrates o que ele achava de João Gilberto. A resposta foi como uma visada no espelho: "Esse cara é louco".

    O maior de todos os paradoxos socráticos foi fazer conviver o médico, o intelectual, o militante de esquerda e o atleta, com o fumante (fumou em média dois maços de cigarro durante a maior parte de sua vida), o bebedor industrial de cerveja (ele tinha cirrose, e o que ele mais bebia, em quantidades realmente astronômicas, era tão somente uma singela cervejinha), o baladeiro inveterado (boa parte do livro trata das festas sem fim que ele organizava ou de que participava em toda parte do globo, em qualquer dia, tendo ou não tendo jogos e compromissos profissionais antes ou depois), o respeitoso mulherengo (ele teve vários casamentos, seis filhos, e era absolutamente apaixonado por todas as suas mulheres) e o anárquico desorganizador de estruturas de poder, especialmente no mundo do esporte, mas não apenas.

    SINFONIA

    A já mitológica "democracia corintiana" foi uma sinfonia que teve nele um maestro. Os solistas foram Wladimir (cuja inteligência igualmente admirável é assunto coadjuvante no livro), o impetuoso Casagrande (o espelho "rock'n'roll" do racionalismo socrático) e o sociólogo Adilson Monteiro Alves. Quando o Brasil apenas ensaiava a luta pela volta da democracia, eles arquitetaram, em conjuntura política interna muito especial, um ensaio de democracia direta. Antes mesmo das Diretas-Já, roupeiros, massagistas e jogadores marcaram presença cidadã em cada ato decisivo do time.

    A pólis corintiana promoveu a maioridade do jogador ao negar a "concentração" (qualquer campo de concentração) para entender o jogo como alargamento da vida, a vitória ou a derrota como alegrias sinceras, e não como negócios particulares. A democracia corintiana foi um "exercício experimental da liberdade", como o grande crítico de arte Mário Pedrosa entendia que deveria ser todo o trabalho libertador (artístico ou não).

    Sócrates tomou para si essa missão e, parcial, apaixonado e político, como um Baudelaire de chuteiras, foi o enunciador de sua efetivação difícil. Por isso é tão emblemática a cena do também mitológico comício das Diretas-Já, retratada no documentário "Democracia em Preto e Branco" [dir. Pedro Asbeg, Brasil, 90 min., à venda por US$ 12,99 no iTunes; para aluguel, a R$ 6,90, ou venda, a R$ 29,90, no Google Play ].

    Ali vemos Sócrates usar com inteligência cirúrgica as palavras e o ímpeto da multidão. Invocando a massa, sentencia: se a emenda passar fico no meu país. Convocado a repetir a promessa, ele muda ligeiramente o pronome: no nosso país. O jogador, que era doutor, era agitador, era também poeta.

    A síntese de uma vida exemplar é sempre histórica. Se Pelé foi o símbolo do desenvolvimentismo brasileiro, a prova de um país "apolíneo" que acreditava que "ia dar certo", Garrincha foi a contraprova dionisíaca desse mesmo sonho, com suas pernas tortas e seu comportamento errante.

    Sócrates, o anjo torto, décadas depois, quando esse sonho já havia morrido nas trevas da ditadura, foi uma nova tentativa de síntese de um país que buscava uma nova imagem e algum sentido. O cidadão Sócrates era uma anomalia incongruente com uma estrutura (o jogo de poder e dinheiro do futebol) e com uma cultura (o Brasil), da qual ele era, ao mesmo tempo, uma expressão completa, porém negativa, utópica e revolucionária.

    FRANCISCO ALAMBERT, 50, é professor de história social da arte e história contemporânea da USP, e autor de "Bienais de São Paulo" (Boitempo), com Polyana Canhête.

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