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    A inatingível unidade do conhecimento

    MARCELO GLEISER

    14/12/2014 03h36

    RESUMO Em novo livro, cientista duas vezes premiado com o Pulitzer propõe modelo para conciliar os saberes científicos em nome de uma compreensão unificada da realidade. Hipótese porém não leva em conta que o conhecimento é móvel e variável, como pondera autor deste ensaio, e não saber é, na verdade, enriquecedor.

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    O biólogo americano Edward O. Wilson é um dos raros super-stars da ciência. Vencedor de dois prêmios Pulitzer pelos seus elegantes ensaios, professor aposentado da Universidade Harvard, Wilson é considerado o maior especialista do mundo em formigas. Entre muitos resultados, Wilson explorou as leis que regem a inteligência coletiva de insetos como as formigas e abelhas, a importância, na evolução das sociedades, de valores como o altruísmo e o sacrifício de alguns para beneficiar a sobrevivência do grupo.

    Wilson lançou um novo livro neste ano,"The Meaning of Human Existence" [W.W. Norton, R$ 79,80, 192 págs., sob encomenda na livraria Cultura; R$ 46,65, e-book] (O sentido da existência humana), no qual busca forjar um caminho para a unificação das ciências com as áreas humanas. No livro, que foi finalista do National Book Award, Wilson continua sua obra de 1998, "Consiliência: A Unidade do Conhecimento" (Campus, 1999, esgotado). Se a iniciativa tiver sucesso, afirma o autor, atingiremos uma compreensão transformadora do sentido de nossa existência.

    Wilson parte da premissa de que, por trás da complexidade da natureza, existem leis simples, que remetem a uma explicação unificada da realidade. A ideia, inspirada pelo que o historiador Gerald Holton chamou de "encantamento iônico", remete a Tales de Mileto, o primeiro dos filósofos ocidentais.

    Tales viveu em torno de 650 a.C. na região de Iônia, hoje parte da Turquia -daí o "iônico". Interessado no aspecto material da realidade, sugeriu que tudo era água. O sentido de Tales era mais metafísico do que físico, a água representando o potencial transformador de uma natureza sempre em fluxo. O ponto essencial permanece: oculta nas profundezas do real, existe uma estrutura unificada, a fonte de tudo. Decifrar suas leis equivale a desvendar o mistério da existência -dos elétrons ao amor.

    Wilson identifica o encantamento iônico ao elemento religioso que crê ser a matriz da inspiração na busca científica pelo conhecimento: "Acredito ser essa a fonte do encantamento iônico: satisfazer nosso apetite religioso buscando por uma compreensão da realidade objetiva, rejeitando revelações proféticas".

    O autor adota o reducionismo como senhor do conhecimento. A unidade das ciências começa na física, dado que é ela que determina as leis fundamentais da natureza. Como somos feitos de partículas de matéria, entender as leis que regem seu comportamento é uma precondição para entendermos o resto. O plano, portanto, é unificar a física, extrapolar para as outras ciências físicas (química, astronomia, geologia...) e, de lá, para a biologia e as ciências neurocognitivas. Com isso, teremos uma compreensão clara do caráter fisiológico das emoções humanas: dos elétrons ao amor. Como as disciplinas humanas são produto do cérebro humano, serão necessariamente incluídas nessa grande unificação do conhecimento.

    Para chegar a tal objetivo, fora a unificação da física, os cientistas terão de convencer os humanistas a abraçar esse movimento, repensando conjuntamente a estrutura de suas disciplinas sob a luz quantitativa da ciência. Boa sorte.

    Wilson não despreza as disciplinas humanas. Pelo contrário, acha que devem ser celebradas: "São a história natural da cultura, nossa herança mais preciosa e privada". Considera que as artes, a filosofia, a teologia, a história são, em essência, produtos de quem somos, da nossa história evolucionária: para entendermos história temos que começar na pré-história. É um erro separar nossa habilidade como entidades criadoras dos processos evolucionários que, ao longo de 2 milhões de anos, moldaram o Homo sapiens a partir duma linhagem de primatas bípedes. Assim, traçamos uma linha que parte do Big Bang e passa pela origem da matéria, da vida, da vida complexa, dos humanos e termina nas obras criadas pela nossa espécie em todas as áreas do conhecimento. Essa é a conciliação que busca Wilson: uma ponte ligando a história cósmica à história humana.

    Wilson resume sua missão: "A conciliação do saber busca salvar o espírito através da liberação da mente humana -não de sua rendição. Seu princípio central, como sabia Einstein, é a unificação do conhecimento. Quando lá chegarmos, compreenderemos quem somos e por que estamos aqui".

    MISSÃO

    Infelizmente, a missão é inatingível tanto em princípio quanto na prática. Em princípio, porque a noção de unificação na física, o ponto de partida de Wilson, não faz sentido epistemologicamente. Na prática, porque não podemos acumular conhecimento suficiente para construirmos uma visão unificada da realidade.

    Ao encantamento iônico temos que contrapor a "falácia iônica", termo proposto pelo historiador das ideias Isaiah Berlin (1909-97). Qualquer sistema de conhecimento que almeje completude é necessariamente cego a como o conhecimento é adquirido. "Toda filosofia é produto de duas coisas apenas: curiosidade e miopia", escreveu o filósofo francês Bernard de Fontenelle ao final do século 17. A aquisição de conhecimento é, por necessidade, um processo que se ramifica: quanto mais sabemos, mais percebemos o quanto ainda temos por saber.

    Buscamos sempre por descrições cada vez mais unificadas dos fenômenos naturais. Mas não temos qualquer indicação de que essa estrada tenha fim. Mesmo na física de partículas elementares, podemos apenas construir descrições unificadas provisórias, que serão suplantadas por novas descobertas. A gravidade de Aristóteles era muito diferente da de Newton; a dele, muito diferente da de Einstein. Mesmo hoje, estamos repensando as propriedades da força gravitacional; existem propostas de considerá-la como uma força diferente das demais, irreconciliável com o que ocorre no nível subatômico.

    Não temos por que esperar que a mente humana possa decifrar a essência da realidade; precisamos aprender a viver com o mistério, com o fato de que não podemos chegar ao fim do conhecimento.

    Mesmo que sejamos feitos de átomos, não podemos usar a física atômica para descrever nossa fisiologia ou comportamento. Níveis de organização material diferentes requerem leis diferentes, e essas leis são novas e irredutíveis.

    Usando as formigas de Wilson, o comportamento do grupo segue leis bem diferentes das que regem o metabolismo celular de cada formiga e, mais ainda, das que regem as propriedades dos seus átomos. Não existe uma continuidade entre o que ocorre com os átomos e o altruísmo de algumas formigas. A cada nível crescente de complexidade material, mudam as descrições e a metodologia. Caso contrário, economistas teriam que estudar mecânica quântica para examinar o mercado de capitais.

    Wilson acredita numa espécie de determinismo cósmico, baseado numa causalidade universal. Se o consciente humano é redutível à simples leis físicas, podemos relacionar nosso comportamento, nossas escolhas subjetivas, a uma teia de causa e efeito que teve início no próprio Big Bang. Nesse caso, a noção de livre-arbítrio seria uma ilusão "biologicamente adaptativa", que nos protege contra o fatalismo: acreditando ter controle sobre nossas vidas, continuamos a nos reproduzir.

    Esse tipo de determinismo é inconsistente com a física quântica -na qual existe uma incerteza essencial ao nível de cada partícula que pode tomar essa ou aquela propriedade (girar para no sentido horário ou anti-horário, por exemplo). Cada opção leva a uma história divergente. E, se tudo é já definido, qual a intenção de Wilson ao querer que tomemos o futuro em nossas mãos, que preservemos a Terra e seus habitantes, eliminando a guerra e a intolerância?

    Na prática, também, existem limites intransponíveis, dado que a aquisição do conhecimento científico depende da tecnologia usada nos instrumentos de medida. Basta comparar a astronomia antes e depois do telescópio, a biologia antes e depois do microscópio, e como esses campos do conhecimento avançam devido ao progresso dos instrumentos de observação. Ver mais não significa ver tudo.

    Pode haver um caminho para a unificação do conhecimento? Apenas no engajamento construtivo das disciplinas. Cientistas e humanistas devem, sim, colaborar, encurtando as distâncias entre suas metodologias e objetivos. Existem muitas áreas em que as duas vertentes do conhecimento convergem, como, por exemplo, na questão do livre-arbítrio ou na natureza da verdade.

    Por outro lado, querer construir um único edifício do conhecimento é querer empobrecê-lo. Existem muitas formas de olhar para o mundo. Melhor do que chegar a um pressuposto fim no qual tudo é um, é celebrar a pluralidade do saber, a natureza instável do conhecimento, fonte de nosso desejo de querer sempre buscar. Aceitar a incompletude do saber não é uma atitude derrotista; ao contrário, é libertadora, pois entende que a busca não tem fim. O que pode ser mais instigante do que saber que existirá sempre algo de novo a ser descoberto?

    MARCELO GLEISER, 55, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é "A Ilha do Conhecimento" (Record).

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