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    Vislumbre de um jóquei, conto de Arthur Miller

    ARTHUR MILLER
    tradução JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
    ilustração MARCELO COMPARINI

    14/12/2014 03h26

    SOBRE O TEXTO Este conto faz parte de "Não Preciso Mais de Você e Outras Histórias". O volume, que reúne três livros do autor, chega às livrarias em 29/1, pela Companhia das Letras.

    *

    É como este saloon, é o melhor de Nova York, certo? Não dá nem para ir ao banheiro se não tiver uma nota de cem dólares enfiada em cada orelha, olhe só aquele vagabundo grisalho ali com aquela dona, enchendo a cara para tirar a esposa da cabeça e para quê? Pra mandar ver com aquela qualquer que ele pagou, claro. Eu amo todos. Eu me entrego a este mundo, a esta vida, à palhaçada toda.

    Marcelo Comparini

    Estou gostando de estar aqui falando com você. Por que será? Quem sabe por que a gente se conecta com algumas pessoas e com outras não? Estou absolutamente feliz agora. Eles subestimam a própria natureza da lealdade entre homens, é diferente com uma mulher o tipo de desafio. Eu podia vencer às vezes, mas ficava com vergonha porque o desgraçado do cavalo me fazia ir sacudindo até a linha de chegada, em vez de montar estiloso. Eu era capaz de ficar mais grudado no cavalo do que qualquer filho da puta consegue, mas às vezes a gente pega um perna de pau de um cavalo e sacode feito um peixe amarrado num caminhão sem amortecedor. A gente monta é para os outros jóqueis, pela admiração deles, pelo estilo. Em minha última corrida, atravessei uma cerca na Argentina, me enrolei no arame, me ferrei, quebrei vinte e dois ossos e, depois de três meses no hospital, a dor passou. Um jóquei é que nem estrela de cinema, aquela confusão toda, noite e dia, as donas babando seu nome gravado na porra da testa. Nada. Só dois caras, principalmente o Virgil, aquele filho da puta é leal, eu morro pelo desgraçado.

    Quem é que entende isso hoje? Fui ver esse tal de doutor Hapic, ano passado, um encanto de velho engomado, o melhor pelo que dizem. E deitei lá no sofá velho e quebrado, ele olhou lá nos escaninhos dele e vem com um placê! Acho que eu devo ser chegado em homossexualidade porque é isso que é se você sente muito afeto por homens, e ali está lá aquele velho me pedindo uma dica para o sexto páreo, me perguntando se eu sabia de algum bookmaker honesto e tal. Passei três horas com ele, ele cancelando uma consulta depois da outra, e quando fui embora me cobrou só meia hora! Mas como é que eu vou saber quem vai vencer? Mesmo quando eu montava eu não sabia. Minha nossa, nem o cavalo sabia! Por que não deixam a coisa correr por si, quer dizer, por que analisar tanto? Todo mundo que eu conheço que foi ao analista saiu mais sério que uma porra de um juiz. Eu concordo, o negócio é pistilo e estame, tudo bem, não nego. Mas, nossa!, me dá uma folga, me deixa morrer rindo se eu tenho de morrer. Eu estou pronto. Se escorrego na neve e vou parar debaixo de um táxi por aí, eu aceito a morte. Eu amo ela, a minha mulher, casado faz dezoito anos, e meus filhos, mas a gente bota um limite em algum lugar, em algum ponto, senão não sobra espaço para o papo na esquina. Os homens têm medo, você viu isso por onde andou? Ficam fazendo umas marquinhas, mas não bota uma linha, um limite. Ninguém sabe mais onde começa ou acaba, é como se tivessem mudado os mapas e botassem Chicago na Letônia. Não deixam mais ninguém morrer por lealdade, não tem nem o que roubar.

    Sei lá, eu sou ignorante, cabeça oca, mas eu sei ver estilo nas coisas. O negócio não é ganhar, é montar a porra do cavalo que ninguém mais consegue ficar em cima. Esse é o desgraçado que você quer montar. Quando os outros jóqueis olham e sabem que o cavalo quer te matar. É aí que sobe a bandeira e seu sangue começa a dar risada. Uma vez eu fui ver o meu pai.

    Nunca contei isso para ninguém e você sabe o quanto eu falo. Sério mesmo, nunca contei isso. Eu fiz esse negócio na televisão, uma entrevista com uns escritores feios sobre os livros deles, o negócio era se um jóquei sabia ler de verdade e eu me dei bem até que subi no jaguar e me mandei para o México, não aguentava aquilo. Roubar, tudo bem, mas bater a carteira não, aqueles escritores não eram de nada, mas toda semana tinha de aguentar eles como se o cavalo Man O'War corresse uma milha sem parar pra mijar com um jóquei cego em cima. Aí, vai, a estação de televisão recebe uma carta de Duluth perguntando se eu nasci em Frankfurt, Kentucky, se o nome da minha mãe é tal e tal e, se aquilo tudo batesse, o cara provavelmente era o meu pai. Aquela letra toda torta, parecia que ele tinha escrito num trator. Então eu pego um avião e vou bater naquela porta, e na minha frente tem um pintor de parede.

    Eu só queria dar uma olhada, sabe? Bater os olhos nele. E lá estava ele, uns setenta anos, ou cem. Se mandou quando eu tinha um ano. Nunca tinha visto ele. Agora eu sempre sonhava com ele, que era da alta malandragem, algum ladrão elegante, quem sabe da família Rousseau de Kentucky, algum cara estiloso com as mulheres, e se mandou atrás da sua sorte. Alguma coisa interessante assim. Mas ali está ele, um pintor de parede. E morando no bairro dos negros. Eu sou dos últimos que resistem, não aguento eles. Mas tem um negro que mora vizinho, um cara legal de verdade, e a mulher dele é legal também. Dava para perceber que gostavam dele. E eu parado ali. Pra que é que eu fui? Quem é ele? Quem sou eu se ele é meu pai? Mas o mais louco é que eu sabia que era filho dele. Como você disse, eu sou filho do meu pai. Eu sabia disso, mesmo ele sendo totalmente estranho. Eu só queria fazer alguma coisa por ele. Qualquer coisa. Estava pronto a dar a vida por ele. Afinal, quem sabe a situação qual era? Quem sabe minha mãe mandou ele embora. Quando sabe o de dentro vendo de fora? Então perguntei pra ele: "Do que você precisa?".

    Faço qualquer coisa que você quiser, falei, que estiver no meu alcance, se bem que eu estava cheio da grana, foi depois do Derby. Ele era pequeno também, não tanto como eu. Eu sou tão pequeno que quase não sou americano, mas ele era pequeno também e falou assim: "A grama dos fundos fica tão alta e grossa que não consigo empurrar o cortador. Então se eu tivesse um daqueles cortadores com motor".
    Eu peguei o telefone e eles mandaram um caminhão com todo tipo. E ele ficou a tarde inteira olhando cada um até que afinal escolheu um com um motor maior que uma porra de uma mesa e eu comprei pra ele. Eu tinha de ir embora para pegar o avião de volta porque tinha prometido para o Virgil que ia pra San Pedro pra vigiar uma dona que ele precisava deixar lá uma noite inteira, então entrei no quintal e me despedi. E ele não desligou o motor nem pra gente conversar sossegado. Deixei ele lá se divertindo, andando lá no quintal atrás da porra do cortador.

    Nossa, como eu bebi! Aquelas duas donas ali na frente estão olhando para nós faz tempo. O que me diz? O que interessa a cara delas, são todas a mesma coisa, eu gosto de todas.

    ARTHUR MILLER (1915-2005) dramaturgo, ficcionista e ensaísta americano, autor de, entre outros, "A Morte de Um Caixeiro-Viajante" (Companhia das Letras).

    JOSÉ RUBENS SIQUEIRA, 69, é tradutor de obras como "David Copperfield" (Cosac Naify), de Charles Dickens.

    MARCELO COMPARINI, 34, é pintor.

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