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    Diário de Bagdá - Minutos mais longos

    DIOGO BERCITO

    21/12/2014 03h07

    O tempo às vezes passa, em Bagdá, devagar demais. Em um dos diversos controles militares da cidade, preso em um engarrafamento, o carro da reportagem parece percorrer os minutos em seu próprio ritmo preguiçoso. A coreografia é, ali, essencial: para o terrorismo, pouca gente é um alvo específico, e a sobrevivência na floresta de palmeiras da capital iraquiana depende de não estar, em um segundo exato, no lugar errado.

    O trânsito, em especial ao redor de "checkpoints" e mesquitas, costuma causar ansiedade por ser o endereço de explosões. É um tempo que passa devagar, em um relógio de pulso que faz "bum-bum" em vez de "tic-tac".
    Os minutos têm também a duração alongada nos gestos culturais, como o aperto de mão com um empresário iraquiano, que dura toda a despedida. O quanto precisar. Assim como um almoço no clube de caça de Bagdá, ao qual os convidados chegam no instante que bem entendem. A primeira leva já come quando chega a segunda, e a refeição se torna uma cadeia de entrada, prato principal e sobremesa em que os comensais originais esperam por horas para poder se levantar, enquanto os demais começam a se alimentar.

    PEIXE DE PÓ

    O rio Tigre ainda é, como deve ter sido na Antiguidade, uma das imagens mais impressionantes da capital iraquiana. Suas águas escorrem fazendo uma curva no meio do percurso e depois voltam ao caminho original, formando uma espécie de alça que cerca a porção de terra onde a reportagem da Folha se hospeda.

    Os arredores, em especial a rua Abu Nuwas, são marcados pela venda de "masguf", o prato nacional iraquiano: carpa grelhada (um vendedor soletra, escrevendo letras árabes no ar com os dedos, k-a-a-r-b). O prato é feito abrindo o peixe ao meio e prensando as duas metades em uma gaiola metálica.

    Na periferia de Bagdá, a água aparece na beira das rodovias. Homens seguram mangueiras com a mão, em um constante fluxo formando parábolas no ar seco. O líquido, bombeado de reservatórios próximos, nunca deixa de jorrar. Motoristas encostam e pagam para lavar a poeira de seus carros.

    BANDEIRA DE SANGUE

    Para quem precisa que se desenhem as coisas, o período da peregrinação de "arbain" é ideal -fica fácil visualizar quem pertence a qual ramo do islã em Bagdá durante os dias em que os xiitas peregrinam ao local santo de Karbala em homenagem a Hussein, neto do profeta Maomé morto no século 7.

    Os bairros xiitas na capital iraquiana são marcados pelas bandeirolas com o rosto do mártir, geralmente caracterizado por um manto verde e o olhar compenetrado, de sobrancelhas quase franzidas.

    A morte de Hussein é um dos divisores entre sunismo e xiismo, na história do islã, e a peregrinação tem forte carga emocional ali. Em um bairro xiita, às 23h, a reportagem caminha nas ruas entre cartazes com máximas religiosas e o frequente "ya Hussein" ("ó, Hussein") escrito. Como são alvo para terroristas sunitas, incluindo o Estado Islâmico, essas regiões costumam ser mais tensas. A Folha volta ao hotel às 23h55, cinco minutos antes do toque de recolher daquela noite.

    IMPÉRIO DE FIOS

    As fachadas em Bagdá parecem uniformemente sujas por uma poeira amarronzada. Obsessivos por limpeza precisam segurar os seus impulsos, que lhes pedem que varram o asfalto. As vidraças estilhaçadas não são substituídas em diversos dos edifícios, dos quais parte está, aliás, abandonada. O "imperial" da capital iraquiana -também capital do Califado Abássida- parece ter se desfeito e escorrido Tigre abaixo.

    Com a falta de eletricidade, proliferam na cidade os geradores. Seus fios se emaranham entre os prédios como uma cama de gato, no mercado de livros da rua al-Mutanabi. No final do caminho, intelectuais se reúnem no tradicional café Shahbandar, onde fumam narguilé e discutem, dizem, mais a poesia do que a política.

    DIOGO BERCITO, 26, é jornalista e assina os blogs Mundialíssimo e Orientalíssimo no site da Folha.

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