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    Xeca Mozah: a face (in)aceitável da expansão mundial do Qatar

    ANDREW ANTHONY
    DO "GUARDIAN"

    21/12/2014 03h22

    A nova proprietária da casa mais cara do Reino Unido domina o palco ocidental como a mais glamourosa embaixadora do estado petroleiro. Mas na verdade ela representa uma das famílias mais repressivas do planeta

    Bem perto do Regent's Park, a pouca distância da mesquita central de Londres, fica Cornwall Terrace, um conjunto de casas que consta da lista britânica de proteção ao patrimônio histórico, exemplo perfeito da arquitetura da era da regência, com sua retomada do estilo greco-romano. Construídas por John Nash e desenhadas por Decimus Burton, elas são tão grandiosas que tendem a ser subdivididas ou servir de sede a empresas.

    Mas no ano passado a xeca Mozah bint Nasser al-Missned, talvez a integrante mais chegada a publicidade da família real do Qatar, adquiriu três das casas por um valor estimado em 120 milhões de libras. Na semana passada, surgiu o anúncio de que ela as transformaria em uma mansão de três mil metros quadrados, com salas de jogos, elevadores duplos, uma academia de ginástica e uma piscina pavimentada com pedras Portland. O resultado provavelmente se tornará a residência privada mais cara do Reino Unido.

    Mulher elegante e dotada de talento vistoso para combinar o estilo ocidental moderno e a sensibilidade árabe tradicional, a pequena incursão da xeca Mozah ao mercado imobiliário londrino não pode ser descrita como uma simples construção de casa, na verdade. Porque, da mesma forma que acontece no caso de muitos de seus novos vizinhos, a transação representa fundamentalmente uma operação corporativa. O novo palácio servirá de sede londrina à família Thani, cujo negócio de família é, para todos os fins e propósitos, o Qatar.

    Roberto Stuckert Filho - 12.nov.2014/PR
    A presidente Dilma Rousseff durante encontro com Mozah bint Nasser, em Doha
    A presidente Dilma Rousseff durante encontro com Mozah bint Nasser, em Doha

    Os multibilionários soberanos do Qatar são donos da Shard, Harrods, da aldeia olímpica britânica, da casa que abriga a embaixada dos Estados Unidos em Grosvenor Square, de metade do edifício de apartamentos mais caro do mundo em One Hyde Park, de uma parte do Camden Market e do antigo quartel de Chelsea, para não falar de 8% da bolsa de valores de Londres e participação semelhante no banco Barclays, bem como um quarto das ações da Sainsbury's. No total, eles controlam mais terrenos em Londres do que a família real britânica.

    As casas números 1, 2 e 3 de Cornwall Terrace serão a residência londrina do filho da xeca Mozah, o xeque Tamin bin Hamad al-Thani, atual soberano do Qatar. Ele assumiu o trono que era do pai, Hamad bin Khalifa al-Thani, no ano passado, e herdou, para todos os fins práticos, uma nação. Como aponta Allen Fromherz em "Qatar: A Modern History", "todo o Estado do Qatar se tornou quase uma espécie de corporação, com o xeque como presidente-executivo". Ele estava se referindo ao pai do atual emir, mas o princípio continua o mesmo. Não é fácil estabelecer distinções entre a riqueza e o poder do Qatar e os interesses da família Thani. Eles tendem a ser quase idênticos.

    E a xeca Mozah ocupa posição intrigante próxima do centro de ambos. Ela é a face esclarecida de um regime profundamente conservador, uma mulher alta e bonita que foi fotografada sem véu ao lado da rainha Elizabeth 2ª e de Michelle Obama.

    Presidente da Fundação pela Educação, Ciência e Desenvolvimento Comunitário do Qatar, ela recebe crédito por comandar a expansão da educação universitária no emirado, pela expansão da Orquestra Filarmônica do Qatar e pela construção de um hospital moderno em Sidra. Em 2003, se tornou enviada especial da Unesco para questões de educação básica e superior.

    Embora atenta aos costumes locais, ela consistentemente projeta uma imagem de modernidade simpática ao Ocidente. Seu site registra seu "compromisso para com a educação progressista e o bem-estar comunitário no Qatar e sua forte defesa de um relacionamento forte entre o mundo islâmico e o Ocidente".

    Viajando em companhia do marido, o antigo emir, ela mantém um perfil muito mais visível do que o da maioria das demais mulheres de líderes do Oriente Médio. O trabalho dela, é costume dizer, é o de personificar o "poder brando", o lado fotogênico e charmoso de uma família que dirige um Estado onde a lei vigente é a sharia - a lei religiosa islâmica -, onde a homossexualidade pode ser punida com a morte, as mulheres sofrem severa restrição às suas liberdades e os trabalhadores estrangeiros são tratados como servos, privados de direitos e forçados a trabalhar em condições altamente perigosas. Nesse sentido, a xeca Mozah é símbolo das profundas ambiguidades que fazem do Qatar uma proposição tão curiosa. Apesar de contar com a maior renda per capita do planeta, o emirado construiu o esplendor e o luxo de sua capital, Doha, com base na exploração impiedosa de trabalhadores importados.

    O exemplo mais egrégio dessa prática são as 964 mortes de trabalhadores estrangeiros registradas em 2012 e 2013, muitas das quais de pessoas trazidas para trabalhar em obras relacionadas à controvertida Copa do Mundo de 2022.

    O Qatar é uma sociedade tribal, e a tribo da xeca Mozah é a dos Missned. O pai dela foi oponente do xeque Hamad bin Abdullah al-Thani, o avô do atual emir. Como resultado, a família viveu no exílio no Egito mas voltou para o casamento da xeca com o herdeiro aparente do trono, em 1977. Ela tinha 18 ano e estava estudando sociologia na Universidade do Qatar, e se tornou a segunda das três mulheres do xeque Hamad bin Khalifa al-Thani. Duas décadas depois, seu marido derrubou o pai em um golpe incruento e se tornou emir.

    Foi sob Hamad que o Qatar iniciou forte expansão de seu papel internacional. Ele criou a Al Jazeera, a influente rede de notícias do Oriente Médio, e começou a reposicionar o Qatar como importante agente regional e, por meio de um fundo nacional de investimento com US$ 100 bilhões em ativos, fez do emirado um importante investidor internacional.

    Para um país do tamanho do condado de Yorkshire, o Qatar, em consequência de sua imensa riqueza petroleira e de gás natural, faz sentir sua influência em toda a região. O emirado não só financia o Hamas, os rebeldes líbios e sírios e a Irmandade Muçulmana no Egito como mantém relacionamentos com os Estados Unidos, que classificam o Hamas como movimento terrorista, e o Irã, que apoia o regime de Bashir Assad na Síria.

    Ainda que seja impossível dizer se a xeca Mozah desempenha qualquer papel direto nessa forma de política, os rumores são de que teria persuadido seu marido a apoiar os rebeldes líbios quando Muammar Gaddafi ameaçou esmagar a insurreição de Benghazi. Também se diz que ela levou o governo do Qatar a adquirir a Harrods, e que teve papel importante na aquisição da grife de moda Valentino.

    Publicamente, ela se concentra na educação como meio de disseminar a mensagem do Qatar. Começou uma campanha, Educação para Todos, cujo objetivo é colocar 10 milhões de crianças na escola em todo o mundo. O custo dessa campanha é estimado em US$ 1 bilhão, e o Qatar cobrirá um terço dele. Não menos de metade do orçamento de assistência internacional do emirado é dedicado à educação, e boa parte dele é encaminhada a lugares que não têm grande importância estratégica.

    Mesmo assim, muitos observadores presumem que esse esforço mundial pela educação seja parte da expansão da esfera de influência do emirado. A xeca Mozah rejeita essa interpretação. "As pessoas sempre pensam que você deveria vincular sua assistência estrangeira aos seus interesses nacionais", ela declarou no começo do ano em uma conferência de cúpula sobre educação em Doha. "Mas será que é preciso que as coisas sejam sempre assim? Não vejo dessa maneira. Encaro o assunto como nossa responsabilidade internacional para com os outros".

    Mas se a generosidade do Qatar e as campanhas educacionais da xeca Mozah não representam uma jogada de poder brando, elas podem servir para desviar a atenção da espantosa falta de responsabilidade que o país parece sentir por sua massa de trabalhadores estrangeiros. Apesar de toda a retórica progressista dirigida ao exterior, a família Thani mantém em seu país um regime que pouco faz para desafiar atitudes que permitem más práticas em escala industrial e injustiças gritantes em meio ao boom econômico que o emirado vive.

    Se você penetrar um pouco abaixo da ultramoderna superfície de Doha, uma rígida e hierárquica sociedade tribal continua viva e bem. No topo fica a família Thani, a tribo governante há 150 anos, que domina a administração; abaixo dela, diversos outros clãs importantes; ainda mais abaixo, o resto dos cidadãos. Com riqueza quase ilimitada propiciada pelos recursos energéticos, o Qatar não tem pobreza interna a combater.

    Mas a nação é mantida em funcionamento por estrangeiros, muitos dos quais vivem em alojamentos lotados e insalubres, trabalhando jornadas dolorosamente longas e à mercê de seus empregadores qatarianos. E, além disso, os qatarianos foram repetidamente acusados de bancar extremistas islâmicos na Síria, Iraque e em outras áreas do mundo muçulmano.

    O governo de Qatar nega qualquer vínculo com o jihadismo, da mesma forma que negou qualquer corrupção financeira para a conquista do direito de sediar a Copa do Mundo. Mas as duas acusações se recusam a desaparecer, e por isso imagens positivas na mídia, como as geradas pela xeca Mozah, valem muito. Comprar casas de 120 milhões de libras enquanto você defende os despossuídos é um feito considerável. Ela não é a primeira integrante da realeza a viver no luxo enquanto posa para fotos ao lado dos menos afortunados. A princesa Diana executou manobra semelhante, que lhe valeu elogios generalizados.

    Como Diana, a xeca Mozah visita campos de refugiados. Como ela, a xeca foi mãe de um futuro soberano. E agora ela também é dona de uma casa extraordinariamente grande em Londres. A xeca Mozah, como uma das três mulheres do emir, sempre conheceu seu lugar. Quer em Cornwall Terrace, quer em um campo de refugiados no Quênia, ela sempre servirá à família Thani.

    Dossiê Xeca Mozah

    Nascida em 8 de agosto de 1959, na cidade costeira de Al Khor, no norte do Qatar, filha de Nasser bin Abdullah al-Missned, um qatariano importante.

    Melhores momentos: ajudar na Cidade da Educação, uma área de Doha que abriga sucursais de universidades estrangeiras, entre as quais o University College de Londres. Ser incluída na lista de mulheres mais bem vestidas da revista "Vanity Fair".

    Piores momentos: O exílio, em companhia de sua família, que deixou o Qatar quando o pai dela se desentendeu com o emir. O fracasso da organização de defesa da liberdade de imprensa criada em Doha quando seu presidente, Robert Ménard, se demitiu em 2008 alegando falta de independência.

    O que ela diz: "Precisamos de políticos que compreendam o poder da educação para seus países, suas economias. Ela não deve ser vista como luxo. É essencial".

    O que os outros dizem: "Opulência real encontra heroína de Hitchcock... nós gostamos da combinação perfeita entre um turbante e óculos escuros clássicos em estilo Persol". - "Vanity Fair", lista das mulheres mais bem vestidas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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