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    Comitê Internacional de Resgate ajuda refugiados a reconstruir a vida nos EUA

    CHRISTINE SPOLAR
    DO "FINANCIAL TIMES"

    04/01/2015 03h11

    Existe algo de reconfortante no Parkview Gardens Apartments, com seus sólidos edifícios de tijolos vermelhos, pátios de estacionamento ordeiros e pequenos parques infantis repletos de verde e que se enchem de crianças quando os ônibus escolares amarelos estão chegando ou partindo. É o perfeito retrato de um subúrbio norte-americano tranquilo, ao brilho do sol de um fim de dia de outono.

    E de repente o ritmo da música africana surge da janela de um carro que está parado com o motor ligado. Um leve aroma de cominho e cebola frita surge de uma janela aberta. A porta de um dos apartamentos mostra decorações natalinas precoces. Outra se abre e exibe uma sala de visitas decorada com flores de papel para a celebração do diwali, o festival das luzes hinduísta. Mais adiante na rua, um homem está carregando um sofá para um apartamento recém-alugado, e grunhe um alô amistoso em minha direção. É um afegão que no passado trabalhou como tradutor em seu país para organizações norte-americanas. Algumas portas adiante, uma família do Iraque está preparando uma refeição de legumes na chapa e arroz, enquanto assiste a um de seus vídeos preferidos no YouTube. A tela de seu televisor de tela grande exibe "caminhada pelo centro de Bagdá", um vídeo sem história. Mas as imagens trêmulas, em preto e branco, carregam muitas lembranças.

    Parkview Gardens é o lugar em que centenas de recém-chegados aos Estados Unidos se apegam ao que o passado foi –e aprendem rapidamente a recomeçar. A 30 minutos de metrô da capital norte-americana, a comunidade tem 600 apartamentos, metade dos quais alugados a refugiados. Por mais de 25 anos, esse complexo residencial privado em Riverdale, Maryland, vem lentamente construindo um relacionamento estreito com o mundo conturbado, um apartamento por vez.

    David Mendick se tornou administrador do Parkview Gardens em 1988, e por acaso algumas agências de reacomodação –organizações sem fins lucrativos que o governo dos Estados Unidos emprega para encontrar casas para pessoas que estão fugindo de conflitos ou perseguição– o procuraram em busca de apartamentos vagos. Mendick ficou intrigado. Ele cresceu em Liverpool, viveu em Israel por alguns anos e depois se casou com uma norte-americana. Novo em Maryland, ele sabia o que era começar de novo, pela primeira e até pela segunda vez. Imaginou que podia dar uma chance a alguns recém-chegados que haviam passado por maus momentos.

    Para Mendick, os refugiados provaram ser um bom investimento. Eles pagavam os aluguéis em dia. Em geral mantinham os apartamentos, seus primeiros lares seguros em anos, muito limpos e bem conservados. Houve maus entendidos amenos sobre aluguéis e sobre as normas do condomínio –poucos deles falavam inglês– mas Mendick não os encarava com muita preocupação. Como empresário, ele viu uma queda no número de despejos. Como pai de três filhos, ele considerava que o que acontecesse aos refugiados nos Estados Unidos –um país de imigrantes– seria como um barômetro dos valores do país.

    Por isso Mendick decidiu que, não importa o que houvesse de errado no mundo –na Bósnia, Butão, Iraque ou Afeganistão–, o condomínio Parkview Gardens podia ajudar. Ele aceitou mais refugiados como inquilinos, e depois deu empregos a alguns deles. Em seguida, contratou mais alguns. Decidiu que lhes pagaria mais que o salário mínimo estadual de Maryland - optando por seguir a recomendação federal, mais alta, de US$ 10,10 por hora.

    "Por que eu fiz isso? Por que não?", Mendick disse. "Eu não conseguia ver motivo para não ajudar".

    Hoje, os empregados do Parkview Gardens podem parecer, e especialmente soar, mais exóticos do que os de outros condomínios ou imobiliárias. Muitos deles chegaram aos Estados Unidos com a ajuda do Comitê Internacional de Resgate (IRC), um grupo humanitário que trabalha em mais de 30 países, oferecendo assistência a quase 15 milhões de pessoas. Eles recolocam 10 mil refugiados nos Estados Unidos a cada ano. Em um ano no qual as crises de refugiados internacionais só fizeram crescer, o IRC foi selecionado pelo "Financial Times" como organização beneficiária de seu apelo assistencial na temporada de festas.

    A mulher que entrega os formulários de inscrição aos potenciais inquilinos do Parkview Gardens um dia viveu em um campo de refugiados em Ruanda. Dois dos recepcionistas são de Bagdá. Um grupo de homens do Butão e Nepal está reunido diante do portão de entrada, onde estão se preparando para seu turno de trabalho como seguranças, neste e em outros condomínios.

    Zemrushe Shabiu, a gerente administrativa do Parkview Gardens, uma mulher de fala rápida, estava separando caixas de perus congelados, que seriam distribuídos como brindes aos moradores antes do feriado de Ação de Graças. Há 15 anos, Shabiu chegou como refugiada da guerra em Kosovo. Ela se lembra de ter subido e descido montanhas em companhia da mãe e dos cinco irmãos no segundo trimestre de 1999, até que a família encontrasse um refúgio na Macedônia. Eles caminhavam de luto, pesarosos. Horas antes, haviam sepultado o pai, um albanês de Kosovo espancado até a morte por soldados sérvios.

    Zemi tinha 21 anos, e preencheu formulários em um campo de refugiados da ONU solicitando transferência. Quatro meses mais tarde, o pessoal do IRC recebeu a família Shabiu quando esta desembarcou de um avião em solo norte-americano. Zemi estudava direito em Kosovo, e passou suas primeiras semanas no país aprendendo o básico. Em um ano, era fluente em inglês e tinha três empregos. Este ano, celebrou um marco em sua vida nos Estados Unidos: comprou uma casa.

    "Eu sei o que eles estão passando, sim", disse Zemi, 36, mãe de três filhos. "Tínhamos uma vida maravilhosa e, de repente... ela acabou. Sei como é."

    "Por isso sempre digo a quem chega que eles precisam parar para respirar, e pensar positivamente. Melhor que deixem o negativo no lugar de onde vieram... Não é fácil –mas vai dar tudo certo".

    Visitei Parkview Gardens pela primeira vez em outubro, para uma conversa com Manar Qazan e Ahmed Baiy, um casal de Bagdá. Conhecia Manar desde 2003, quando contratei seus irmãos, Nadeem e Arfan, como tradutor e motorista, para o meu trabalho como correspondente do "Chicago Tribune" na guerra do Iraque. Mais de uma década depois, tomei o metrô em Maryland para descobrir como ela estava se adaptando à sua nova vida nos Estados Unidos.

    Manar, 32, e sua família sofreram perdas dramáticas ao longo dos anos. Sua única irmã foi morta a tiros em 2006 quando insurgentes atacaram um posto de controle em uma estrada, no momento em que Manar e seu irmão e irmã passavam de carro. Em junho, quando os militantes do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL) saíram ao ataque por todo o Iraque e Síria, o pai de Manar, um professor de inglês muito respeitado, caiu morto em sua casa em Bagdá.

    Semanas mais tarde, as autoridades de imigração norte-americanas ligaram para Manar. Sete anos depois de seu pedido inicial, ela, Ahmed e Ayham, o filhinho do casal, foram informados de que receberiam vistos e poderiam se transferir para os Estados Unidos. O casal ficou feliz, e assustado. Poderia deixar para trás a violência do Iraque –mas isso também significaria deixar para trás tudo e todos que eles conheciam. Manar refletiu que, se seu pai ainda estivesse vivo, ela talvez não o deixasse. Mas ele não estava mais com ela, o que talvez fosse um sinal. Por isso, celebraram o segundo aniversário de Ayham em agosto, na casa da família em Bagdá, dias antes da partida. Houve lágrimas, mas nenhuma dúvida sobre a chance que estavam recebendo de uma vida melhor.

    Dois meses mais tarde, em seu apartamento no Parkview Gardens –uma unidade de um dormitório mobiliada esparsamente com uma cama, um sofá, um televisor e uma mesa de jantar preta reluzente acompanhada por quatro cadeiras– Manar e Ahmed pareciam bem assentados, embora ainda enfrentem dificuldades. Os assistentes sociais do IRC não demoraram a obter para eles assistência alimentar, aulas grátis de inglês e dinheiro para três meses de pagamento de aluguel. Sua situação previdenciária, a assistência financeira –de US$ 400 ao mês por três meses– e seus documentos de trabalho estavam acertados. "É simples, e eu gosto", disse Manar sobre sua nova casa. "Sinto-me segura. E há regras. Gosto de regras. No Iraque, não sobrou regra alguma".

    Mas agora o assistente social do IRC que cuida do caso deles estava perguntando a toda hora sobre a situação de emprego do casal. E eles estavam enrascados. Por sua vida profissional inteira, os dois foram engenheiros. Manar era agrimensora na Universidade de Bagdá. Ahmed, também engenheiro civil, comandava equipes de trabalho em canteiros de obras. Mas em Maryland, os engenheiros precisam cumprir requerimentos mais rigorosos de certificação. Mesmo postos baixos na hierarquia requeriam mais documentação. Manar e Ahmed estavam sendo instados a se concentrar em postos básicos de trabalho –qualquer coisa que lhes permitisse ingressar no mercado, aprender sobre as normas do trabalho norte-americanas e falar inglês todos os dias. Eles estavam tentando seguir essa estratégia, mas se sentiam confusos.

    Para encontrar emprego em Bagdá, eles teriam recorrido aos amigos ou parentes, ou enviado e-mails para descobrir quem estava contratando. Nos Estados Unidos, não conheciam quase ninguém. Os dois falam bem inglês, mas são tímidos e não se sentem capazes de ligar para empresas e simplesmente pedir trabalho. Por isso, estavam procurando emprego online. O casal tem um laptop velho –e com o agravante de ter perdido a tecla Y–, e os dois se alternavam no preenchimento de fichas de inscrição. Os dois fizeram fichas nas lojas de departamento Macy's, nos hotéis Hilton, nas lojas Ikea de móveis, em seguradoras e bancos. Clique após clique, eles buscavam descobrir exatamente o que um empregador norte-americano deseja.

    Eu acompanhei o trabalho de Ahmed para preencher uma ficha na cadeia de varejo Target. Havia uma vaga para um assistente de farmácia. O formulário online que o site da empresa oferecia custou 45 minutos de trabalho no preenchimento –e isso comigo lendo tudo que ele escrevia e aconselhando-o sobre o jargão mais correto. Boa parte do esforço de Ahmed terminou perdida quando ele clicou na aba errada, perto do final do processo. Manar veio ajudar, digitou alguma coisa e conseguiu recuperar o texto perdido.

    Nós três –todos dotados de diploma universitário– contemplamos a tela mortificados. O formulário de inscrição da Target quase nos derrotou.

    O IRC opera em zonas de conflito e desastre em todo o mundo. Nos Estados Unidos, que recebem mais refugiados a cada ano do que qualquer outro país, a organização opera em 22 cidades. No geral, os Estados Unidos vêm aceitando 70 mil refugiados ao ano, nos dois últimos anos –e todos eles podem se qualificar para obter cidadania, em cinco anos. A cada semana, funcionários do Departamento de Estado norte-americano conversam com o pessoal do IRC e de outras agências assistenciais para avaliar a situação de pessoas em risco e determinar o melhor lugar para acomodá-las.

    Assistentes sociais do IRC –como a equipe que está ajudando Manar e Ahmed– lidam com até 100 refugiados de cada vez. O trabalho deles é complicado. Cada pessoa ou família tem vulnerabilidades específicas. Algumas delas sofrem de problemas de saúde agudos. Outras não falam inglês. Crianças precisam ser matriculadas rapidamente em escolas públicas. Todos precisam aprender o básico: como tomar o ônibus, comprar um bilhete de metrô, fazer compras no supermercado, encontrar um médico. Os assistentes sociais carregam os refugiados com ele em visitas às suas comunidades, nos primeiros dias, e depois priorizam as necessidades mais prementes. Passadas algumas semanas, o pessoal do IRC aumenta a pressão: os adultos capazes de trabalhar devem trabalhar. Precisam encontrar empregos.

    O IRC, como outras organizações que assentam refugiados, julga seu sucesso em parte pela contagem de refugiados que conseguem empregos em tempo integral antes que as verbas federais e assistenciais que os beneficiam se esgotem. (Isso em geral se traduz em três a quatro meses de pagamento de aluguel e pequena assistência financeira. Alguns refugiados em situação mais difícil podem receber assistência financeira por mais alguns meses.)

    O que vem complicando a situação é a mudança na natureza e na formação das pessoas em risco. Por anos, os refugiados que viviam em campos operados pela ONU em lugares como o Nepal, Ruanda e Sudão, chegavam sem muita experiência de trabalho. Seus primeiros empregos –em fábricas ou restaurantes– lhes ofereciam treinamento básico muito necessário quanto ao que significa um dia de trabalho nos Estados Unidos.

    Mas as guerras recentes causaram mudança de perfil para os refugiados. Um subconjunto difícil –refugiados com expectativas diferentes– começa a emergir. Iraquianos e afegãos, alguns dos quais dotados de vistos especiais para recompensar seu serviço junto a soldados ou empresas norte-americanas, chegam falando bem inglês, com alguma competência administrativa e meses, se não anos, de experiência em serviço às forças armadas ou empresas ocidentais. O IRC está tentando se adaptar obtendo mais parceiros empresariais, mas os números e as necessidades são constantes.

    Em Baltimore, a uma hora de carro de Parkview Gardens, organizadores do IRC formaram um conselho de assistência aos empregadores que promove quatro reuniões anuais com empresas locais. A conversação –entre empresas que têm empregos a oferecer e refugiados que precisam de oportunidades– ajuda a criar possibilidades, de acordo com Ruben Chandrasekar, diretor executivo do escritório do IRC em Baltimore.

    Chandrasekar teve alguns sucessos este ano. Fundações e parceiros empresariais doaram US$ 150 mil a dois programas que prometem resultados tangíveis em dois anos: aulas sobre educação de crianças pequenas, que promoveriam o emprego no setor de creches, onde existe carência de pessoal, e um esquema de financiamento de imóveis na cidade. O curso de trabalho com crianças é realizado nos finais de semana, para permitir a participação dos refugiados que tenham emprego. Em oito meses, mais de uma dúzia de mulheres receberam certificados como educadoras infantis. Agora, podem trabalhar em creches ou até, aproveitando a instrução financeira recebida no curso, criar pequenas empresas.

    Já a iniciativa de financiamento de imóveis foi mais complicada. O IRC realizou oficinas para instruir os refugiados quanto à logística da compra de uma casa, e encontrou funcionários da prefeitura e corretores de imóveis dispostos a trabalhar sob algumas restrições financeiras - que incluem um programa de poupança de seis meses de duração para os refugiados. Já há 10 refugiados a caminho de adquirir casas, e Baltimore terá novos contribuintes. "E por que isso é importante? Isso envia uma mensagem sobre os refugiados. Eles estão ajudando a reconstruir a cidade, e isso beneficia a todos", disse Chandrasekar.

    Contei a ele sobre os problemas de Manar e Ahmed para encontrar um primeiro emprego. O conselheiro deles estava, e com razão, pressionando para que obtivessem emprego logo, para acelerar sua transição. Ahmed foi de ônibus ao escritório do IRC em Silver Spring, a fim de treinar para uma entrevista de emprego. (Com alguma prática, ele aprendeu a dar um firme aperto de mão em estilo norte-americano.) Ahmed disse ao seu conselheiro de emprego que estava disposto a trabalhar na construção civil, se isso pode aproximá-lo mais de um emprego em engenharia. Mas ele também parecia ciente de que seria necessário postergar esse sonho. Voltou para casa e para o seu laptop, caçando vagas em bancos e seguradoras.

    Chandrasekar ouviu polidamente. A verdade é que ele conhece todos os percalços na jornada de um imigrante. Ele e a mãe se mudaram da índia para os Estados Unidos quando ele era adolescente. Sua mãe, que já tinha mais de 40 anos e 25 anos de experiência de trabalho como enfermeira ou professora, não podia trabalhar como enfermeira nos Estados Unidos antes de passar por múltiplos exames de qualificação. Por dois anos, ela trabalhou por salário muito mais baixo como empregada doméstica - e depois passou o resto de sua carreira em um cobiçado posto como enfermeira em um hospital de câncer.

    Há um descompasso entre os empregos e certos refugiados, disse Chandrasekar, e o governo e empresas privadas poderiam resolvê-lo. "O governo federal não considerou bem a capacitação da população de refugiados, aqui, e nem descobriu maneiras de lhes propiciar empregos que aproveitem seu potencial", ele disse. "É um problema. Sempre digo que os refugiados podem ser produtivos -e mais produtivos - se formos capazes de aproveitar as capacitações que eles têm".

    A reforma da imigração é uma questão política quente nos Estados Unidos. O IRC, como seria de esperar, apoia os planos abrangentes do presidente Obama para permitir que milhões de imigrantes ilegais radicados há muito nos Estados Unidos "saiam da sombra e acertem sua situação legal". Os refugiados demonstram o que imigrantes podem conseguir, se contarem com ajuda. O número de refugiados disparou para alturas históricas, mas aqueles que os Estados Unidos recebem tendem a mais beneficiar o país do que sobrecarregá-lo, diz Chandrasekar.

    "Teremos 70 mil pessoas chegando a este país como refugiados este ano. Dentro de alguns meses, veremos essas mesmas pessoas encontrando empregos, pagando impostos", ele disse. "Ajudá-las agora não é caridade. Significa que estaremos acolhendo pessoas que desejam contribuir".

    Lydie Kujuru está celebrando seu primeiro aniversário na Uptown Bakery, uma panificadora perto de Parkview Gardens que produz 10 mil pães ao dia. A bela refugiada de 22 anos é uma das histórias de sucesso do IRC. Ela e seus cinco irmãos chegaram de um campo de refugiados de Ruanda em setembro de 2013. Lydie falava francês, suaíli e um dialeto local - mas quase nada de inglês;. A mãe dela terminou internada no hospital logo depois que a família chegou - um episódio que enervou a todos eles. "Nosso primeiro mês foi muito difícil", diz Lydie, com um risinho. "Não falávamos o idioma. Não tínhamos pessoas próximas, aqui".

    "Eu esperava que nossa vida mudasse, comparada com a que tínhamos na África. Mas não foi fácil. Eu tomava o ônibus para ir a algum lugar e me perdia todos os dias. Andava uma hora de ônibus e não conseguia lembrar onde era o ponto em que precisava descer. E tinha medo de perguntar às pessoas", ela diz.

    A assistente social do IRC que cuidava de seu caso se tornou a guia da família. Ela fez com que Lydie, seu irmão Pilote e sua irmã Caroline se matriculassem em cursos intensivos de inglês. Organizou as contas médicas da família. Em dois meses, Lydie e o irmão encontraram emprego na Uptown Bakery. Sua irmã foi contratada para cortar legumes em uma fábrica de processamento de alimentos.

    "O trabalho realmente me ajudou", disse Lydie. "Ninguém falava francês na padaria, mas o chefe me mostrava o que eu tinha de fazer, quando queria alguma coisa. Os outros empregados ajudam, mas posso dizer que meu chefe é meu amigo".

    Alfredo Estrada, o gerente de operações da padaria, diz que Lydie é seu exemplo do que os refugiados são capazes de fazer. Ele gerencia 200 funcionários, e "sempre digo [ao IRC] que me mande mais gente como Lydie, A atitude dela? Está sempre disposta a aprender". E ela trabalha duro: oito horas por dia, e mais na temporada de festas, Lydie está de pé, carregando caixas pesadas de baguettes e challa. O irmão dela, Pilote, trabalha como misturador. "A padaria está em minhas mãos", ele diz, com um sorriso. "Se eu errar, o pão não acontece".

    Pilote e Lydie apontam para o fato de que a Uptown, que paga cerca de US$ 500 a cada um deles a cada duas semanas, é só o começo. Em novembro, Pilote comprou um carro, um Chrysler 2007, financiado, e agora o usa para ir a um curso de computação em Washington. "Quero trabalhar com tecnologia", diz, entusiástico. O carro também ajuda Pilote e Lydie a cumprir uma exigência que eles veem como muito americana: chegar na hora.

    "O tempo importa. A maioria dos norte-americanos não se atrasa - e por isso você precisa fazer a mesma coisa", diz Lydie. Ela reflete em voz alta sobre o que poderia fazer depois da Uptown Bakery. Ela quer um emprego melhor, com salário mais alto, e fala em ser enfermeira. Com uma risada travessa, ela cogita que poderia ser mais que um modelo para os funcionários da padaria –"por que não uma modelo de verdade?", ela diz, risonha. "Adoro moda".

    Suk Rai toma o ônibus às 7h30min, a cada manhã, para assistir aulas na nona série da Parkdale High School. E às 15h ela corre de volta ao apartamento de dois dormitórios em que sua família vive em Parkview Gardens, a primeira casa com água corrente em que já morou.

    Suk, 19, nasceu em um campo de refugiados no Nepal. Até chegar aos Estados Unidos, vivia em um casebre de um cômodo. É a mais nova de oito filhos, e tem um papel especial em seu novo país: é a filha que ainda vive com os pais e precisa ajudá-los a se acomodar à nova vida cotidiana. E também cuida de parentes mais jovens.

    O pai dela, Tika Man Rai, tem 71 anos. Por meio de um intérprete, ele fala sobre suas dificuldades no Butão como membro da minoria kirati, e de sua fuga à discriminação contra as minorias. "Não tínhamos a esperança de vir para os Estados Unidos. Vivemos por muito tempo no Nepal". Suk, em inglês lento mas compreensível, relata os desafios dos últimos 11 meses.

    "O primeiro dia foi difícil. Eu era tímida, não sabia inglês. E meus pais continuam a não falar inglês". Mas ela se vê como afortunada. Pode frequentar uma escola pública até os 21 anos, o que deve bastar para que aprenda bem o idioma. Ela mostra o boletim: 100% em inglês, 90% em álgebra, 97% em música. A pior matéria para ela? História dos Estados Unidos, 69%. "Preciso melhorar", ela diz, revirando os olhos com muito humor e contando que tem professores na escola e em casa. Duas sobrinhas, de seis e 10 anos, chegaram aos Estados Unidos quatro anos atrás, e as meninas falam sem parar em inglês.

    "Chego em casa todo dia, para cozinhar com minha mãe e ajudar. Porque me preocupo com eles, sim", ela diz. "O bom é que estamos confortáveis aqui. Temos aquecimento e como cozinhar... e de noite posso estudar".

    O telefone de Ahmed estava tocando. Ele parecia entusiasmado ao desligar. Uma seguradora o havia chamado para uma entrevista. Era sua primeira oportunidade de entrevista pessoal.

    Ele não conseguiu dormir de noite, de tanta empolgação. De manhã, estudou na Internet os ônibus que teria de tomar, e percebeu que a jornada duraria duas horas e meia. Ele correu ao escritório do Parkview Gardens para ver se alguém podia ajudar. David Mendick por acaso estava enviando um segurança em uma missão que o levaria até bem perto do endereço a que Ahmed teria de ir. Os dois foram juntos de carro.

    Horas depois, Ahmed voltou, deprimido. Ele chegou na hora, mas mal conseguiu compreender o que a entrevistadora desejava. Ela falava rápido- algo sobre um emprego em vendas. Ele estava nervoso, e com vergonha de pedir que ela repetisse as perguntas. Depois, apanhou o ônibus errado, e perdeu a conexão seguinte. Confuso e ansioso, ele chamou um táxi, pagando caro.

    Naquela noite, Manar e ele reavaliaram suas opções. Os Estados Unidos seriam mais difíceis do que haviam imaginado. Tinham de fazer escolhas - quem se empregaria primeiro, e se podiam confiar Ayham aos cuidados de outra pessoa. "Eu realmente não entendo como as mulheres norte-americanos fazem com seus bebês", disse Manar. "Em Bagdá, eu trabalhava cinco horas por dia e minha mãe ajudava. Aqui, é muito mais difícil".

    No dia seguinte, Ahmed recuperou o ânimo. Decidiu que procuraria um emprego que requeresse apenas um ônibus ou jornada de metrô. Ele tinha de melhorar seu inglês –as pessoas aqui falam rápido, rápido demais–, e portanto aulas de inglês eram sua prioridade.

    E estava reconsiderando a possibilidade de entrar em uma loja com o currículo na mão, pedindo emprego. "Não sei ser vendedor, não", disse Ahmed com um riso tristonho. "Mas posso aprender, de verdade. Descobri que preciso começar em algum lugar".

    O Comitê Internacional de Resgate

    O "Financial Times" selecionou o Comitê Internacional de Resgate como seu parceiro no apelo assistencial de festas deste ano. O IRC é uma organização assistencial de alcance mundial, que trabalha para ajudar pessoas afetadas por desastres e conflitos a sobreviver e depois reconstruir suas vidas.

    Fundado em 1933 por Albert Einstein, ele mesmo refugiado da Alemanha nazista, o IRC é uma das mais importantes organizações humanitárias do planeta. No ano passado, sob a presidência de David Miliband, ele ajudou 14,8 milhões de pessoas.

    As equipes do IRC buscam estar no lugar afetado em 72 horas, em situações de emergência, ajudando a atender necessidades imediatas. Também trabalham em projetos de prazo mais longo, incluindo a reacomodação de refugiados que não têm como voltar para casa.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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