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    O cenário arquitetônico do ano que passou

    FERNANDO SERAPIÃO
    ilustração DEBORAH PAIVA

    04/01/2015 02h50

    RESUMO A crise econômica modificou a pauta arquitetônica, deixando os edifícios espetaculares em segundo plano. Os destaques de 2014 foram para a urgência e agendas de responsabilidade social e ambiental; no Brasil afloraram movimentos como o pernambucano Ocupe Estelita e o paulistano Parque Minhocão.

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    No fim do último mês de outubro, Frank Gehry iniciou uma maratona de compromissos na Europa, que incluía colocar a pedra fundamental de uma ponte que terá seu nome em Bilbao, cidade espanhola que ele incluiu no mapa com o Guggenheim, e inaugurar o mais comentado edifício de 2014, a Fundação Louis Vuitton, em Paris.

    A agenda do arquiteto canadense começou com o prêmio Príncipe das Astúrias das Artes: após voar 14 horas desde Los Angeles, onde vive e trabalha, Gehry enfrentou a coletiva de imprensa, num histórico hotel de Oviedo, norte da Espanha. Às 16h, vestindo blazer e camiseta preta, ele entrou na sala dizendo-se desmemoriado e arrancou risos dos jornalistas. Subiu ao palco com dificuldade, fotografado por mais de dez câmeras.

    Na primeira pergunta, questionaram-no sobre que resposta dar a quem considera sua obra "arquitetura do espetáculo". Em silêncio, Gehry olhou para o jornalista e levantou o dedo do meio. Após quatro segundos, a apresentadora, constrangida, continuou com a entrevista: "A pergunta seguinte?".

    CENÁRIO

    A cena descreve o cenário arquitetônico de 2014: aos 85 anos, Gehry apresentava sinais de cansaço, mesma fadiga que sua obra causa em quem acompanha o setor. Como astro maior do "star system" arquitetônico, por 15 anos foi estimulado a criar um prédio espetacular toda segunda-feira e agora, com a crise financeira, assiste ao ciclo se esgotar mais rápido do que seu corpo. Mais tarde, no pátio do hotel, ele se desculpou, com a dor do herói convertido em vilão: "Não peço a ninguém que me contrate, a única coisa que quero é que me deixem trabalhar em paz".

    Foto Eduardo Knapp/Folhapress

    A Bienal de Arquitetura de Veneza foi outro indício de 2014. O curador Rem Koolhaas flertou, diabolicamente, com o fim da arquitetura: de um lado, o irônico holandês desnudou a história, escancarando uma Itália vulgar e decadente; do outro, ele reduziu a criação arquitetônica a composição de componentes construtivos.

    Até mesmo o Prêmio Pritzker, o combustível do espetáculo, acusou o golpe: a honraria de 2014 foi para a um profissional comprometido social e ambientalmente. "Para Shigeru Ban, a sustentabilidade não é um conceito a ser adicionado após o fato; ao contrário, é intrínseco à arquitetura", proclamou o júri. Em outubro, em uma palestra no fórum Arq.Futuro, em São Paulo, o japonês de 56 anos desnudou sua glória: "O presidente do júri disse-me que, agora, eles estão escolhendo arquitetos com mensagens diferentes".

    A crise modificou a pauta arquitetônica, deixando os edifícios espetaculares em segundo plano. As manchetes foram para a urgência, agendas de responsabilidade social e ambiental, ações comunitárias e pesquisas. No Brasil afloraram movimentos como o pernambucano Ocupe Estelita e o paulistano Parque Minhocão; por outro lado, esse cenário ampliou a dor da morte de João Filgueiras Lima, o Lelé, um modernista que abandonou a utopia para tratar de problemas reais.

    DESARMONIA

    Nos últimos dias do ano, a notícia mais intrigante não foi a desarmonia dos volumes do Museu das Confluências, em Lyon, França -desenhados pelos austríacos do Coop Himmelb(l)au-,ou a as imagens de mais um mirabolante projeto de Zaha Hadid. O destaque foi a descoberta de um segredo de quase 2.000 anos.

    Com a ajuda de um supercondutor, uma equipe de pesquisadores de Berkeley, nos Estados Unidos, desvendou a resistência e a durabilidade do concreto romano -que mantém de pé obras como o Coliseu e o Panteão: um mineral evita microfissuras, deixando a estrutura coesa. A descoberta poderá impactar o meio ambiente, pois os romanos utilizavam cinzas vulcânicas quase sem alterar a temperatura, enquanto o nosso concreto envolve aquecimento que contribui com 7% do carbono lançado na atmosfera.

    Já os estádios brasileiros não envelhecerão como o Coliseu -e isso não é culpa da durabilidade do concreto: delicadas obras, como a de Manaus, criada há 45 anos por Severiano Porto, foram abaixo em troca de vistosas arenas da Copa, que agora andam às moscas.

    O ano do centenário de Lina Bo Bardi e do documentário sobre Sergio Bernardes marcou também a ausência de Oscar Niemeyer no cenário arquitetônico brasileiro: no rearranjo de forças, não há projetista oficial, e novas referências foram ignoradas por políticos e cartolas da Copa.

    Pergunta óbvia e constrangedora: os 12 estádios foram desenhados pelos melhores profissionais brasileiros? Com honrosas exceções, como Gustavo Penna, Héctor Vigliecca e Aníbal Coutinho, a resposta é não. O fato escancara a ausência da meritocracia, principalmente em encomendas públicas. E o problema não é notável só no âmbito dos estádios: entre as dezenas de obras publicadas na mídia especializada em 2014, somente duas são frutos de concursos públicos -e uma delas, criada por jovens paulistas, fica no Panamá.

    Se, no atacado as arenas não atrapalharam a Copa, no varejo foi decepcionante sua irrelevância arquitetônica. Em nossa história recente, não se conhecem outros edifícios que tenham custado 8 bilhões de reais. E é triste imaginar que esse montante daria para construir 200 fundações Iberê Camargo. Em 2014, o museu porto-alegrense desenhado pelo português Álvaro Siza foi escolhido por um júri internacional melhor obra das Américas entre 2000 e 2008.

    ARENA

    Qual seria o mais significativo prédio brasileiro de 2014? Sem contradição, digo que é uma arena. Para confundir mais, lembro que foi desenhada pelas estrelas que criaram a Allianz Arena e o Ninho do Pássaro, símbolos da Copa da Alemanha e das Olimpíadas de Pequim, respectivamente.

    Localizada em um bairro pobre de Natal, a Arena do Morro é uma quadra poliesportiva coberta idealizada pelos suíços do escritório Herzog & de Meuron.

    Enquanto detalhavam o Complexo Cultural da Luz, projeto paralisado em março por Geraldo Alckmin (prova de descaso com a qualidade arquitetônica), eles receberam a encomenda potiguar, financiada por uma fundação suíça.

    O ponto alto é o uso inovador de dois elementos típicos do modernismo brasileiro, reinterpretados pelos europeus: a cobertura, que sombreia a quadra como se fosse uma árvore, e os elementos vazados, que definem espaços fluidos.

    Entre os projetos públicos brasileiros, o mais significativo de 2014 é um conjunto habitacional em Heliópolis, em São Paulo, concebido pelo escritório Biselli Katchborian -autor de um extraordinário desenho de ampliação do aeroporto de Guarulhos, jogado no lixo pelo governo Dilma em troca do medíocre terminal inaugurado às pressas.

    A obra da favela integra um grupo de dezenas de projetos de qualidade, geridos na gestão Kassab, que se notabilizou em abandonar projetos-padrão valorizando autores como Marcos Acayaba, MMBB ou Base 3. A atual gestão, que merece aclamação pela aprovação do Plano Diretor progressista, apostou em um projeto urbano mamute, denominado Arco do Futuro, mas, infelizmente, paralisou a maioria das urbanizações de favelas (pois não se enquadram no Minha Casa, Minha Vida).

    Verdade seja dita: o programa federal de habitação é um desastre do ponto de vista urbanístico e arquitetônico, a urgência da demanda não justifica construir guetos periféricos, sem se preocupar com qualidade de vida, de desenho, e integração de usos e rendas.

    GOURMET

    Em 2014, enquanto a classe média continuou se deliciando com varandas gourmet em condomínios-clube antiurbanos, avançou a valorização da arquitetura em edifícios sofisticados, sobretudo em São Paulo, tanto de apartamentos, como os de Marcio Kogan, Isay Weinfeld ou Grupo SP, quanto de escritórios, como o Edifício Corujas, do FGMF.

    Destacaram-se também iniciativas isoladas, de usos diversos, como um centro de estudos (de Reinach Mendonça), uma passarela móvel sobre o canal do rio Pinheiros (Loeb Capote) e uma instituição cultural (RoccoVidal P+W).

    Dois pequenos pavilhões em São Paulo, contudo, merecem olhar atento. Abrigando usos tão incomuns quanto a qualidade dos desenhos, eles são o suprassumo da arquitetura nacional de 2014. O primeiro é um espaço de lazer privado, desenhado por Angelo Bucci, com uma piscina a quase seis metros de altura, destinado a momentos de ócio; o segundo, criado pelo escritório Andrade Morettin, é uma área de convívio envidraçada para familiares e convidados de uma família paulistana. Enquanto o primeiro põe a prova a engenhosidade tectônica e espacial de Bucci, o segundo é mais uma demonstração da habilidosa pesquisa de transparências de Morettin.

    Esses dois exemplos paulistanos provam que, em arquitetura, tamanho não é documento. Aliás, questão conhecida desde o Tempietto, minúscula peça-chave do Renascimento italiano, criada por Bramante em resposta ao resistente Panteão. Tal como o Tempietto, escondido dos turistas em um pequenino claustro, os pavilhões paulistanos são intramuros.

    Os muros, por trás dos quais estão 95% da melhor produção nacional, alimentam a anedota corrente entre críticos estrangeiros, que dizem que a arquitetura contemporânea brasileira é especializada em paraísos e infernos.

    Espelhando as desigualdades do país, os projetistas locais atuam, em alto nível, em extremos, da reurbanizações de favelas a projetos cinematográficos para elite. Respondendo à insegurança, essas duas pontas se encastelam, deixando uma enorme vala entre elas: o espaço público, terra de ninguém. Para o bem da cidadania, além de combater o crime - mazela que deveria ser enfrentada com o mesmo vigor dedicado à inflação-, os setores público e privado, com ajuda dos arquitetos, precisam encontrar meios de produzir o espaço coletivo no país.

    FERNANDO SERAPIÃO, 43, é crítico de arquitetura, editor da revista "Monolito" e autor de, entre outros, "A Arquitetura de Croce, Aflalo e Gasperini" (Paralaxe).

    DEBORAH PAIVA, 64, é artista plástica.

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