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    Arquivo Aberto - Muito além de um bar

    CLAUDETTE SOARES

    04/01/2015 03h07

    São Paulo, 1960

    Eu, carioquinha da gema, morar em São Paulo? Na primeira vez que Ronaldo Bôscoli sugeriu que seria uma boa ideia mudar-me do Rio para a Terra da Garoa, não dei muita bola. Mas não demorou para que lhe desse razão. No início dos anos 1960, a bossa nova já tinha se tornado uma febre no Rio, e ele dizia que eu poderia me tornar "só mais uma cantora de bossa nova", entre dezenas de outras. Em São Paulo, a história era outra.

    Acabei aceitando o convite do jornalista Paulo Cotrim para inaugurar o João Sebastião Bar, acompanhada pelo pianista Pedrinho Mattar. Era um bar curioso, na rua Major Sertório, bem no centro da capital paulista. Parecia o castelo do Drácula, com velas e candelabros. A estreia foi um sucesso. Vinicius foi ver e me ofereceu a canção "Primavera", muito bem recebida no espetáculo "Pobre Menina Rica", então em cartaz no Rio.

    Bosco/Acervo UH/Folhapress
    Claudette Soares posa para foto no João Sebastião Bar, na capital paulista, em fevereiro de 1964
    Claudette Soares posa para foto no João Sebastião Bar, na capital paulista, em fevereiro de 1964

    Eu fazia o principal show da noite, de quarta a domingo. Em pouco tempo, o João Sebastião Bar tornou-se o templo da bossa nova em São Paulo, com a mesma força que teve o Beco das Garrafas no Rio.

    Não era para menos: na quarta eu convidava jovens talentos, como Toquinho, Chico Buarque e Taiguara. Nas outras noites, artistas como Johnny Alf, Geraldo Vandré e Alaíde Costa dividiam o palco comigo. Carlos Lyra, João Gilberto, todo mundo passava por lá. Sem falar de instrumentistas geniais, como Hermeto Pascoal, Arthur Moreira Lima e Cesar Camargo Mariano, que marcavam presença constante.

    Foi lá, portanto, que eu conheci o Cesar, ainda novinho, e convidei-o para gravar "Claudette é Dona da Bossa" (1964), seu primeiro trabalho em disco, como pianista e arranjador. Tenho muito orgulho de tê-lo lançado, e nossa parceria rendeu dez discos.

    Ali era um ponto de encontro fabuloso, onde nasceram outras parcerias. Ao lado de Taiguara e do Jongo Trio, atrações do João Sebastião Bar, apresentei-me no Rui Bar Bossa -mais um fruto da criatividade boêmia- e no teatro Princesa Isabel, ambos no Rio, com o show "Primeiro Tempo 5 x 0", sob a direção de Luiz Carlos Miele e Bôscoli, em 1966.

    Esse show rendeu LP homônimo no mesmo ano. Era a bossa fazendo o caminho inverso, um intercâmbio entre São Paulo e Rio no qual assumi o meu papel.

    Muita gente vinha a São Paulo só para conhecer o tal do João Sebastião Bar. Lembro-me de cantar sentada no piano de cauda, para que, com a casa cheia, todo o público pudesse me ver. Era um charme: de minissaia, sobre a tampa do piano, iluminada por um candelabro. Lá eu me deparei com atores de Hollywood -Kirk Douglas foi um deles-, grandes figuras da época e jovens que posteriormente ganharam notoriedade. Os jornais espalhavam a novidade, as noites eram um estouro, as mesas eram disputadíssimas. Não era só um bar, era o reduto paulistano da bossa nova, onde cantei desde a inauguração até o fechamento, em 1967. Depois de anos, até experimentei voltar a morar no Rio, mas não resisti, não tem jeito: assim como a bossa nova, vim, vivi uma linda história e aqui criei raízes.

    CLAUDETTE SOARES, 77, cantora carioca, lança neste semestre o álbum "Caymmi por Claudette Soares", com arranjos de Giba Estebez e produção musical de Nana Caymmi.

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