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    Dupla da SelgasCano citam filósofos e cineastas para falar de seu trabalho

    EDWIN HEATHCOTE
    DO "FINANCIAL TIMES"

    04/01/2015 03h28

    A dupla de arquitetos espanhóis criou uma obra desorganizada, abertamente futurista e visualmente chamativa

    Quando a SelgasCano –a equipe arquitetônica formada pelo casal José Selgas e Lucía Cano– construiu seu escritório num bosque nos arredores de Madri, os arquitetos não queriam que o lugar chamasse a atenção. Então o construíram no subsolo, com telhado transparente; assim, quem está dentro do estúdio tem a sensação de trabalhar sob a copa das árvores ao alto. A opção revela um desejo de não se destacar, um questionamento das convenções, algo que raramente é visto em obras desse tipo.

    Mas, apesar da modéstia da dupla e do fato de sua firma ser um empreendimento pequeno em um país fortemente atingido pela recessão, Selgas e Cano vêm construindo muito, e obras de grande porte. Desde que abriram seu estúdio, em 1998, eles viraram profissionais cult nos círculos arquitetônicos; sua obra funde o intelectual, o visceral, o público e o belo.

    O status da dupla foi consolidado este mês, quando ela foi escolhida para criar o Pavilhão de 2015 do Serpentine, em Londres. Ao mesmo tempo em que o anúncio era feito, os arquitetos inauguravam outra construção em Londres: um escritório novo e fortemente original para Rohan Silva, o ex-assessor governamental para o setor de tecnologia, numa antiga fábrica de tapetes na saída da Brick Lane, na zona leste de Londres. O lugar parece um pouco uma visão do futuro desde o passado –um futurismo de ficção científica feito de acrílico cor de laranja e cápsulas transparentes curvas, um espaço divertido para start-ups de tecnologia. O contrapeso da porta de entrada é um haltere que levanta e desce quando as pessoas entram, e a grande mesa de conferências no coração do prédio também sobe até o teto para deixar o espaço livre para eventos.

    Há um clima interessante de possibilidades, algo que não poderia ser mais diferente dos espaços de escritório produzidos em massa que ainda são a norma entediante. As obras da SelgasCano, vistas em conjunto, são desorganizadas, abertamente futuristas, visualmente chamativas e muitas vezes feitas de materiais do cotidiano aproveitados para finalidades divertidamente inapropriadas.

    Indagados recentemente sobre seu trabalho, Selgas e Cano citaram a declaração do teórico social Zygmunt Bauman: "Nada é necessário". Pode parecer uma máxima niilista para uma equipe de profissionais criativos, mas eles estavam falando do futuro, convencidos de que "como humanos, como arquitetos... precisamos fazer, construir, muito pouco".

    As figuras citadas pelos dois arquitetos deixam claro que eles não se pautam pelas mesmas referências que a maioria dos arquitetos. Eles falam em Bauman, nos cineastas Werner Herzog, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini e em nomes como Dostoievski, o filósofo esloveno Slavoj Zizek, o poeta medieval Wolfram von Eschenbach e o fotógrafo tcheco Miroslav Tichy.

    Mas seu trabalho também deixa clara essa diferença. Há um enorme centro de conferências à beira do cais em Cartagena, Murcia, criado para lembrar um grande contêiner de transporte marítimo; tubos plásticos pintados com tinta luminescente estão dispostos por suas paredes translúcidas. Houve uma instalação na Bienal de Arquitetura de Veneza que pretendia explorar o modo como o desenvolvimento perturba a natureza (com plantas de crescimento rápido suspensas numa teia de tubos texturizados). Há um auditório na periferia de Cáceres que faz pensar numa estufa espacial que teria despencado sobre a terra, com uma ponta alaranjada que se projeta em direção à cidade, como uma língua posta para fora.

    Talvez o trabalho mais interessante da dupla seja um espaço luminescente e facetado em Mérida, pintado em cores pastéis. A obra, que é tanto de paisagismo quanto de arquitetura, foi criada para o grupo local Factory para ser uma espécie de fórum para a juventude, um espaço público aberto para a prática do skate, escalada, arte de rua e performances. Aqui a paisagem se dobra para virar estrutura, e todas as superfícies, desde o chão ondulado até as paredes prontas para serem grafitadas, são decididamente públicas e voltadas aos jovens.

    A Espanha passou por uma revolução arquitetônica após a morte do general Franco, em 1975. O espaço público foi revigorado, visto como ferramenta para a promoção da democracia e a expressão da liberdade. A arquitetura e o urbanismo foram empregados como ferramentas dessa expressão, definindo o terreno público como alicerce crítico e simbólico da liberdade, ao mesmo tempo em que outras cidades levavam adiante a privatização e comercialização de suas áreas públicas, na surdina. A SelgasCano faz parte da geração que herdou os últimos anos daquela ideia da arquitetura como algo além de mero desenvolvimento –a arquitetura como manifestação sociopolítica do espírito público de uma cidade.

    Mas, quando o trabalho da dupla começou a chegar à maturidade, aquele impulso nacional tinha se degradado, convertido numa compulsão de construir como expressão da beneficência de prefeitos (além de corrupção e propinas), ao invés de democracia cívica. E, com a recessão atual, os arquitetos espanhóis antes enaltecidos hoje estão estagnados num limbo de construção pontual. A impressão que se tem é que, paradoxalmente, essa situação pode convir muito bem à SelgasCano.

    A construção mais recente da dupla, criada com estudantes do MIT, é uma estrutura de baixa tecnologia, feita de colunas de andaimes e folhas de zinco, em Turkana, no norte do Quênia. Trata-se de uma região remota com clima árido e inclemente, onde a arquitetura convencional é quase impossível devido à falta de água (sem a qual não há concreto), à dificuldade de levar materiais até o local da construção e, é claro, aos problemas econômicos. Os arquitetos reagiram criando um espaço público para finalidades múltiplas, feito de materiais mínimos e com abertura máxima. O resultado se assemelha um pouco a um dragão de papel chinês: um projeto orgânico que cria um espaço público no centro de algo que só é um vilarejo em sentido muito amplo, já que seus casebres estão espalhados a quilômetros de distância uns dos outros.

    Esse abrigo básico, expresso em uma forma arquitetônica sofisticada, usando os elementos do canteiro de obras e de uma favela, pode funcionar como sala de aula, centro médico quando recebe enfermeiros para dar vacinas, fonte de sombra, ponto de encontro e sinal visível da existência de uma comunidade. Suas cores fortes são inspiradas por tecidos chamativos e argolas de pescoço, e o espaço é ao mesmo tempo apropriado para o lugar, prático e maravilhosamente estranho.

    Esse dom para criar arquitetura pública em lugares inesperados poderá agora ser expresso no Hyde Park. A SelgasCano prometeu criar o Pavilhão do Serpentine de um material único e fazê-lo transparente e aberto à paisagem em volta. Talvez ele não seja muito visível, mas estou certo de que aquilo que será visível valerá muito a pena ser visto.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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