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    Leia trecho de romance da escritora chilena Lina Meruane

    LINA MERUANE
    tradução JOSELY VIANNA BAPTISTA
    ilustração MARIANA SERRI

    11/01/2015 03h35

    SOBRE O TEXTO O trecho aqui reproduzido abre o livro "Sangue no Olho", que a Cosac Naify lança em fevereiro. O primeiro romance da escritora chilena a ser traduzido no Brasil narra em primeira pessoa os obstáculos enfrentados por uma mulher que fica cega após ter seu olho encharcado de sangue.

    *

    Estava acontecendo. Naquele momento. Fazia tempo que tinham me avisado e, no entanto. Fiquei paralisada, as mãos molhadas de suor empunhando o ar. As pessoas na sala prosseguiam com suas conversas e gargalhadas, até sussurrando exageravam, enquanto eu. E alguém gritava mais alto que os outros, baixem o volume do rádio, não façam tanta bagunça que à meia-noite em ponto os vizinhos vão chamar a polícia. Me concentrei naquela voz estrondosa que parecia não cansar de insistir que mesmo aos sábados os vizinhos iam dormir cedo. Aqueles gringos não eram gente de passar noites em claro como nós, não eram dados a farras, de jeito nenhum. Eram protestantes e protestariam se não os deixássemos dormir em paz. Do outro lado das paredes, sobre nossos corpos e também sob nossos pés, agitavam-se todos aqueles gringos acostumados a madrugar já com a meia no pé e os cadarços amarrados. Gringos que, com a roupa de baixo impecável e a cara engomada, sentam-se toda manhã para comer seu cereal com leite frio. Mas ninguém ligava para aqueles que não conseguiam pregar os olhos, para suas cabeças afundadas sob os travesseiros, para suas gargantas atulhadas de comprimidos que não lhes trariam nenhum alívio se continuássemos sapateando em seu descanso. Sapateando eles, lá na sala. Eu não. Eu fiquei agachada no quarto, com o braço estendido para o chão. E de repente me peguei pensando na insuportável vigília dos vizinhos, imaginando que iam apagar as luzes depois de enfiar tampões ressecados nos ouvidos; que os empurrariam com tanta força que o silicone acabaria estourando. Pensei que preferia ser eu a ter os tampões arrebentados, ser eu a ter os tímpanos trepanados por seus estilhaços. Queria ser a velha que cobre firmemente as pálpebras com a máscara, para tirá-la em seguida e acender a luz. Queria isso porque minha mão ainda suspensa não encontrava nada. Só gargalhadas etílicas atravessando as paredes e me salpicando com sua saliva. Só a voz estridente da Manuela dizendo sem parar por cima da gritaria, pô, galera, um pouco de silêncio! Não, por favor, não, pensei, continuem falando, continuem vociferando, uivem, soltem grunhidos se for preciso. Morram de rir. Eu dizia isso a mim mesma com o corpo todo tenso, embora poucos segundos tivessem se passado. Tinha acabado de entrar no quarto de casal, acabado de me inclinar, eu, em busca da minha bolsa e da seringa. Precisava me injetar à meia-noite em ponto, mas não ia conseguir, porque o precário equilíbrio dos casacos derrubou minha bolsa no chão, porque em vez de parar cuidadosamente, como devia, eu me dobrei e estiquei o braço para apanhá-la. Foi então que um fogo de artifício atravessou minha cabeça. Só que o que eu via não era fogo e sim sangue vertendo dentro do meu olho. O sangue mais espantosamente belo que já vi na vida. O mais incrível. O mais assombroso. Fluía aos borbotões, mas só eu podia percebê-lo. Vi com absoluta clareza como o sangue se adensava, vi que a pressão aumentava, vi que estava atordoada, vi que meu estômago revirava, que sentia ânsia de vômito e, no entanto. Não me levantei nem me movi um milímetro, nem mesmo tentei respirar enquanto observava o espetáculo. Porque essa era a última coisa que eu veria, naquela noite, com esse olho: um sangue intensamente negro.

    Mariana Serri

    LINA MERUANE, 44, é escritora chilena.

    JOSELY VIANNA BAPTISTA, 57, escritora e tradutora, publicou "Roça Barroca" (Cosac Naify).

    MARIANA SERRI, 32, é artista plástica (marianaserri.com).

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