• Ilustríssima

    Monday, 29-Apr-2024 12:30:04 -03

    Miranda July confunde ficção e realidade para promover romance

    ALEXANDRA ALTERJAN
    DO "NEW YORK TIMES"

    18/01/2015 03h07

    Os objetos à venda no site de Miranda July parecem inteiramente comuns, e até deliberadamente aleatórios. Uma escova de cabelos rosa. Um envelope. Um vaso pintado. Um saco de pipoca.

    Inspecionado com mais atenção, cada item se torna misterioso e potencialmente importante, como uma pista em um romance de mistério. A escova está repleta de fios loiros de cabelo. O envelope guarda um segredo - a identidade do pai de uma criança ainda não nascida. A pipoca, bizarramente, tem sabor de chiclete.

    Divulgação
    A multiartista americana Miranda July, que lança o romance "The First Bad Man"
    A multiartista americana Miranda July, que lança o romance "The First Bad Man"

    Cada um dos 50 objetos tem sua contraparte fictícia em "The First Bad Man", o romance de estreia de July, que sai pela Scribner. A narradora do romance, uma mulher de meia-idade e excêntrica chamada Cheryl, cria um inesperado relacionamento com uma mulher mais jovem, a loira, gostosa e tosca Clee, e sua vida compulsivamente ordeira se vê virada de cabeça para baixo.

    Ainda que July tenha criado o site para promover o romance, ele é tanto projeto de arte quanto truque de marketing. Ao permitir que fãs e leitores comprem objetos que antes existiam apenas em sua imaginação e na página, July busca confundir a distinção entre ficção e realidade, uma fronteira que ela sempre atravessa em seu trabalho com arte performática e na escrita.

    "Muitas vezes, projetos do tipo marketing, como esse, ficam a um milímetro de distância do meu trabalho real", diz July, 40, que vive em Los Angeles com o marido, o artista e diretor Mike Mills, e Hopper, 2, o filho do casal. "Gosto que as pessoas sintam que quase poderiam ser aquele personagem da história, que sintam poder cruzar uma linha supostamente não permeável".

    Como artista multimídia que faz filmes, arte performática, peças, bolsas, projetos interativos na Web e, recentemente, um app digital, July ocupa um estranho nicho no panorama literário. Sua ficção, como o resto de seu trabalho, desafia qualquer categorização fácil de gênero. Mistura humor excêntrico, personagens idem e estranhos fetiches sexuais a temas mais sérios como o isolamento, o envelhecimento e a solidão.

    "No One Belongs Here More than You", o livro de contos que ela lançou em 2007, foi sucesso de crítica e vendas. Atraiu elogios entusiásticos de astros literários como George Saunders, Dave Eggers e Amy Hempel e vendeu mais de 200 mil cópias. Ainda assim, July continua a ser encarada por alguns como uma intrusa exótica que só mexe com ficção literária no tempo que lhe sobra de outros projetos.

    "Ela é prejudicada por seus muitos talentos, de certa maneira", disse Eggers, fã do trabalho de July. "É difícil convencer a todos que alguém que cria grandes filmes e é conhecida como artista também pode ser grande escritora de ficção".

    Para "The First Bad Man", as expectativas são elevadas, já que July e sua editora desejam selar sua reputação como romancista literária séria. "Trata-se de um romance profundamente maduro que mostra o alcance de sua voz e a profundidade de sua compaixão pelos marginalizados e excluídos", disse Nan Graham, vice-presidente sênior e publisher da Scribner, que editou o romance.

    Como boa parte do trabalho de July, "The First Bad Man" provavelmente será polarizador, com alguns definindo-o como brilhante, original e autêntico e outros descartando-o com os rótulos muitas vezes atribuídos às peças de arte de July - afetado, rebuscado, forçado.

    Há floreios cômicos e surreais. Caramujos escapam de uma caixa e passam a morar na casa de Cheryl, em dado momento, e em certas cenas Clee e Cheryl praticam cenários de agressão violenta de um vídeo de exercícios de autodefesa. Mas a história também lida com sentimentos brutos e material sombrio, como a porosa linha entre sexo e violência, a maneira pela qual as pessoas exploram aqueles que amam e a dor e o senso de perda que a maternidade traz.

    July diz que muitas vezes se sente mal preparada para o papel de hipster cheia de gracinhas. "Isso sempre me pareceu um pouco diminutivo", ela disse em recente entrevista por telefone. "Sim, realizei alguns projetos fantasiosos, no passado, mas nada do que fiz foi totalmente leve. Não sou essa pessoa. Não sou uma mulher de abraços. Se uma definição é necessária, sou mais espinho do que flor".

    Ela também disse sentir uma forte proximidade com sua excêntrica e imprevisível heroína. "Tudo que faço na vida, o volume furioso de atividades a que me forço, é porque no fundo me vejo tão completamente inerte quanto Cheryl, como se estivesse a 100 milhas de qualquer contato humano e totalmente sozinha, e me sentindo confortável e segura naquele lugar, mas na verdade isso é uma espécie de depressão", ela disse. "Preciso realmente apostar pesado para sair daquele lugar. O que explica toda a minha carreira".

    July cresceu em uma família apegada aos livros em Berkeley, Califórnia. Seus pais, os dois escritores, dirigiam a editora North Atlantic Books, especializada em livros New Age.

    Ela começou escrevendo peças e trabalhando como atriz, mas sonhava se tornar cineasta. Em 2005, lançou seu primeiro longa "Me and You and Everyone We Know", que ela dirigiu e estrelou. No seu segundo filme, "The Future", lançado em 2011, ela interpreta uma mulher que adota um gato de rua, com o namorado. (O gato narrava o filme, um detalhe que propiciou momentos de alegre zombaria aos críticos de July.) Sua arte performática e suas peças são muitas vezes participativas, com membros da audiência fazendo papéis ou contribuindo com e-mails e fotos para projetos online.

    Ela começou a escrever ficção em 1997, e o romancista Rick Moody, amigo da família, a encorajou a levar essa carreira a sério. "Fiquei impressionado com a excêntrica singularidade de sua visão de mundo", ele relembrou, em um e-mail.

    A ideia de ser confinada a uma forma de arte enche July de medo. Por anos, ela manteve um caderno para registrar suas ideias, marcando-as cada qual com uma letra para determinar se servia a um filme, romance, peça performática ou conto. Mais recentemente, ela começou a fazer anotações em seu iPhone. É comum que procrastine flertando com outras mídias.

    A ideia para "The First Bad Man" surgiu em 2010, quando começou a trabalhar em seu segundo longa. O livro se tornou seu foco, ainda que as energias criativas de July ocasionalmente escapassem em outras direções. Ela criou seu primeiro app, "Somebody", que permite que pessoas enviem mensagens a alguém por meio de um desconhecido que as recita em pessoa, com apoio financeiro da grife de moda Miu Miu, da Prada.

    Criou uma bolsa, a Miranda, em colaboração com a grife de acessórios Welcome Companions. (A bolsa tem um compartimento secreto e custa US$ 590; uma edição limitada do mesmo produto sai por US$ 1,5 mil.)

    July apresentou um rascunho de "The First Bad Man" à Scribner pouco antes que seu filho nascesse. Depois de concluir um texto, criar o site do livro representou um grande desafio criativo. Ela e o assistente passaram meses vasculhando o eBay em busca de itens que atendessem às descrições do livro. Fizeram ou encomendaram aqueles que não encontraram ou que eram caros demais, a exemplo de um traje de proteção usado em aulas de autodefesa ou a imagem de um rosto marcado por pintas vermelhas.

    Os itens, que são entregues em companhia de um excerto da página em que estão descritos, são vendidos em leilão, e os proventos vão para a National Partnership for Women & Families, que promove o direito à reprodução, a igualdade no emprego e a assistência de saúde. Um fã pagou US$ 103 por uma nota de um dólar e um grampo; outro adquiriu um guardanapo no qual um número de telefone está escrito por US$ 102,50.

    July já está se encaminhando a outros projetos, como escrever um roteiro e planejar uma obra de arte em grande escala a ser apresentada no ano que vem pelo grupo londrino Artangel.

    "O que me conforta mais é saber que a próxima coisa que farei é completamente diferente", ela disse. "É isso que me ajuda a dormir."

    O livro será publicado no Brasil pela Companhia das Letras ainda no primeiro semestre deste ano sob o título "O Primeiro Homem Mau".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024