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    70 anos depois da evacuação, papel dos guardas de Auschwitz será exposto

    EMMA GRAHAM-HARRISON
    DO "GUARDIAN"

    25/01/2015 03h16

    Os últimos sobreviventes se reunirão no campo mas seu número é cada vez menor, o número de turistas cresce, e uma nova exposição terá por foco não só as vítimas como os perpetradores

    É desconcertante ver visitas a Auschwitz anunciadas como parte de um pacote de excursão que inclui parada nas históricas minas de sal da mesma região, e perturbador ver placas da H&M e da Planet Cinema diante de meus olhos no caminho do antigo campo de concentração na Polônia.

    O local em que a SS comandou o extermínio de pelo menos um milhão de pessoas parece tão isolado em seu horror que é fácil esquecer que, em termos de localização, não é nada isolado. O mais notório dos campos nazistas fica bem perto de uma próspera cidade - o local foi escolhido por conta das linhas ferroviárias que levariam a ele vítimas de toda a Europa, e das fábricas que devorariam toda aquela mão de obra escrava.

    O Holocausto está se transferindo lentamente da memória viva aos livros de História, e o tempo está aparentemente atenuando a realidade das câmaras de gás a ponto de levar alguns visitantes a contemplar a ideia de seguir as lágrimas de uma visita a Auschwitz com sorrisos de admiração pelas estátuas de anõezinhos talhadas em pedras de sal.

    Pawel Ulatowski - 19.jan.2015/Reuters
    Campo de Auschwitz em foto de janeiro deste ano
    Campo de Auschwitz em foto de janeiro deste ano

    Cerca de 300 pessoas que suportaram o pesadelo de Auschwitz se reunirão este mês no local, hoje um museu, para recordar os mortos, e sua libertação. Mas o número de sobreviventes está diminuindo –10 anos atrás, 1,5 mil pessoas participaram da reunião– e os mais jovens deles em geral já chegaram aos 80 e 90 anos. Por isso, museus e educadores estão relutantemente começando a planejar para um futuro no qual não haverá relatos diretos de testemunhas, e tentam descobrir como preservar o impacto e o papel educacional do museu hoje descrito como "lendária atração turística", onde os visitantes tiram selfies nos locais em que centenas de milhares de pessoas foram assassinadas.

    Dentro do museu de Auschwitz, a equipe cuja desanimadora tarefa é organizar as provas do homicídio em massa para fins de exibição insiste em que a concorrência das ridículas estátuas de sal não incomoda. "O motivo para que as pessoas decidam visitar o museu não é exatamente a coisa mais importante para nós", diz Piotr Cywinski, o diretor. Ele quer que os visitantes, depois de lamentar pelos mortos de Auschwitz, deixem o local refletindo sobre o que podem fazer para deter horrores contemporâneos. "Não estamos oferecendo apenas um olhar triste à História... a empatia é um sentimento muito nobre, mas insuficiente". Ele dedicou os últimos anos a criar um fundo de patrimônio de 120 milhões de libras que permitirá que o museu opere sem se preocupar com questões políticas e sem ter de cortejar doadores.

    A equipe dele criou uma nova exposição para o alojamento principal de Auschwitz, um desafio delicado e difícil em um lugar no qual o que está em exibição continua quase inalterado desde que o museu foi criado por sobreviventes do campo, mais de meio século atrás. Ao cruzar a entrada, sob a placa com os dizeres "arbeit macht frei" ["o trabalho liberta"], você estará entrando em contato com memórias do inferno.

    Há 70 anos, em 27 de janeiro de 1945, os comandantes do campo nazista, temendo o rápido avanço do exército soviético, abandonaram seus planos de destruir Auschwitz, e deixaram dezenas de alojamentos intocados, além dos restos destroçados das câmaras de gás de concreto e aço que a dinamite não bastou para destruir de todo.

    Eles conduziram 60 mil prisioneiros em uma marcha da morte que durou semanas; quase um quarto deles morreu. Mas a evacuação apressada permitiu que as gerações futuras tivessem acesso ao remanescente físico de um campo quase que funéreo demais para imaginar, e a parte de seu repelente conteúdo, como por exemplo duas toneladas de cabelos de vítimas que seriam vendidos à indústria têxtil, dezenas de milhares de sapato do último grupo de vítimas assassinadas nas câmaras de gás, e um álbum fotográfico mostrando as operações do campo.

    Alguns poucos milhares de prisioneiros doentes e sofrendo desnutrição extrema foram autorizados a ficar no campo, entre os quais o escritor italiano Primo Levi e Otto Frank, pai de Anna Frank. Pessoas que foram tratadas pelos serviços médicos das forças soviéticas e que sobreviveram às marchas forçadas criaram a terrível crônica da vida no campo que o museu preserva em detalhe.

    Essas mesmas pessoas também tiveram papel central nos esforços de todo o mundo para transmitir a história de Auschwitz às gerações futuras, e fazer soar o alerta sobre o genocídio. "Só comecei a falar a respeito em 2008, porque estava vendo as mesmas ondas antissemitas surgindo, pessoas que nada aprenderam", diz Leslie Kleinman, 86. "É por isso que faço palestras em escolas o tempo todo. Digo às crianças que não deveríamos odiar uns aos outros".

    Kleinman, nascido na Romênia, perdeu sete irmãos e os dois pais em Auschwitz, e sobreviveu comendo grama e neve à marcha da morte por meio da qual o campo foi evacuado. Mas ele não tem raiva, e se casou com uma mulher alemã, o que intriga muitas das pessoas que ouvem suas palestras.

    Karen Pollock, presidente do Fundo de Educação sobre o Holocausto do Reino Unido, disse que "estamos bem cientes do impacto que ouvir o depoimento de vítimas causa, não só no momento em que elas estão presentes mas mais tarde, quando os ouvintes levam com eles a história que ouviram, e a contam a seus amigos e parentes, sentindo a responsabilidade de transmitir a história daquele sobrevivente. Isso na verdade torna mais agudo o desafio que temos de enfrentar, porque temos consciência de que nada preencherá esse vazio".

    O tempo está pesando muito não só sobre os sobreviventes mas sobre a estrutura física do campo, um problema exacerbado pelas exigências do turismo moderno. No ano passado, mais de 1,3 milhão de pessoas visitaram os alojamentos principais de Auschwitz e a desolada área vizinha de Birkenau, onde os trens que levavam prisioneiros ao campo paravam e os judeus desembarcavam e passavam por uma seleção que os destinava a trabalho escravo ou execução instantânea por gás venenoso.

    Mais de 100 edificações sobreviveram no campo, mas a maioria foi erigida rápida e ineficientemente por prisioneiros, o que torna especialmente difícil conservá-las, diz Anna Lopuska, encarregada da preservação. "Nosso objetivo é evitar demolir e reerguer as estruturas de tijolos –porque essa seria uma parede diferente, não a construída pelos prisioneiros, mesmo que os tijolos sejam os mesmos. Cada fragmento, cada objeto, é diferente, e por isso o processo é lento. Não há como criar um procedimento padrão.

    Os objetos cotidianos que as pessoas assassinadas no campo carregavam com elas, os únicos traços físicos de sua existência depois que os corpos foram cremados, também são desafio para os especialistas em conservação. A maior parte do trabalho nessa disciplina envolve proteger obras de arte, não coisas corriqueiras da vida diária. "As escovas de dente são um bom exemplo. São feitas de materiais sintéticos que se degradam rapidamente e ainda não foram desenvolvidos métodos eficientes de conservá-las", diz Lopuska.

    As relíquias mais bem protegidas farão parte da nova exposição, em companhia de um estudo sobre o único aspecto da sombria existência de Auschwitz que o museu havia ignorado até agora. "O que temos exposto agora tem um grande defeito: deixa os perpetradores quase que inteiramente de fora", disse Cywinski, lamentando a ausência de detalhes sobre os homens que fizeram construir e operaram o campo.

    Alguns sobreviventes contaram a ele que os criadores da exposição original não queriam ser lembrados de seus carrascos, e outros disseram que só as vítimas deveriam ser lembradas. Mas para os visitantes atuais que tentam compreender de que maneira se desenrolaram os horrores de Auschwitz, a lacuna é imensa. "Como foi possível que pessoas comuns, pais de família, tivessem começado a assassinar pessoas em escala industrial? Não é uma questão que possa ser colocada de lado", diz Cywinski.

    A primeira seção da nova exposição tratará da "infraestrutura infernal" dos campos, e dos homens que os dirigiam. Uma segunda seção detalhará as vidas daqueles que terminaram enviados ao campo de trabalho, para trabalhar até morrer de fome, e explora a forma pela qual os nazistas tentaram desumanizar completamente essas pessoas.

    A porção final da mostra contará a história das pessoas assassinadas ao chegar, como parte de um programa de extermínio que abarcava igualmente campos de extermínio "puros", menos notórios hoje talvez por terem sido completamente demolidos assim que seu tétrico propósito foi cumprido. Em um deles, Treblinka, quase 900 mil pessoas foram executadas, e menos de 100 sobreviveram.

    O escritório de Cywinski oferece vista para uma das câmaras de gás, e ele tem diante dos olhos um constante lembrete do motivo pelo qual foi escolhido para seu difícil trabalho. "Lançamos acusações contra as pessoas que assistiram sem nada fazer, na época. Mas como seríamos vistos, à luz daquele período?", ele questiona. "Quando contemplamos um genocídio, ou tragédia, ou fome, ou regime totalitário, nosso silêncio é indefensável, hoje. E todos sabemos como acabam essas coisas, qual é o resultado para as vítimas, porque a Europa passou por essa história 70 anos atrás".

    "Espero que, graças a esse memorial e ao trabalho das pessoas aqui, as pessoas assassinem umas às outras um pouco menos. E isso já seria muito", ele acrescenta.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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