• Ilustríssima

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    Dois poemas de Fabrício Marques

    FABRÍCIO MARQUES
    ilustração ANDRÉS SANDOVAL

    01/02/2015 03h39

    Totem para o Homo Zapping

    Acordo João, vou à feira João, passeio João
    mas João até certo ponto:
    é só sair para o olho da rua e já me chamo Násser.
    Conto histórias, manobro vocábulos
    e logo me chamam Heródoto.
    Sou Heródoto até me cansar.
    Das oito às nove sou Mwaka
    e na hora seguinte dou expediente como Zanchi.
    Saio à esquerda à caça de frutas -de preferência vermelhas.
    Descanso no parque como Chang,
    sou Chang de sobreaviso.
    Entro no trabalho e meus colegas me cumprimentam:
    "Olá, Górki, tchau Górki".
    Na hora do café a atendente me reconhece como Xerxes.
    O mercado se inquieta, a Bolsa oscila ao saberem que sou Zeki.
    Às seis da tarde, horário de Brasília, me despeço como Ximenes.
    E, como tal, estranho os homens que atravessam a existência carregando o um só nome.
    Frequento os bares contando façanhas, agora me chamo Baltazar.
    O Corvette sibila no asfalto.
    Luzes grátis e alegres piscam à distância,
    luzes alegres e grátis acenam para mim (me chamo Raoni).

    De Raoni a Quiroga é só um pulo
    E num looping rodopio no baile
    Mais um pouco sou Gale,
    O que toca acordeom e se basta.
    Em casa me recebem como Histeu,
    amanhã é domingo e é floração de incertezas.
    Lagartos lá fora recolhem as hesitações.
    Debaixo desse teto também me conhecem como Jimmy,
    mas podem me chamar de Abraão.
    Até que o sonho comece e eu passe a me chamar Hades.

    Não percam a conta:
    Sou João Násser Heródoto Mwaka Zanchi Chang Górki Xerxes Zeki Ximenes Baltazar
    /Raoni Quiroga Gale Histeu Jimmy Abraão Hades
    Sou uns
    Sou uns e outros a seu dispor

    Alimento boto lenha
    na conversa bonita
    em torno do fogo da vida
    Reparo as chamas
    que partem sem rumo
    e me chamam pelo nome

    Andrés Sandoval

    4 Quartetos

    1.
    Minha namorada muda fica deitada na cama por meses, sentindo seu corpo se desenvolver. O mamilo esquerdo cresceu um pouco mais do que o direito, anotou em seu diário. Estremece.

    2.
    Amarrar um cadarço pode ser banal como uma estrela da Galáxia Ana Elíptica de Sagitarius se enfiando para sempre num buraco negro. Mas é incrível como uma estrela da Galáxia Ana Elíptica de Sagitarius se enfiando para sempre num buraco negro. Ele amarra o cadarço e sai andando. Mais um passo para o irmão de Maria Fernanda. Mais uma estrela saindo de um buraco negro.

    3.
    Ele, o cozinheiro russo, vive há duas semanas com o coração de outra pessoa. Um cão suicida o segue por todos os cantos. Sente um sobressalto sempre que percebe o cão.

    4.
    O cão suicida lambe o sapato do irmão autista de Maria Fernanda. O cozinheiro russo também sente calafrios ao observar os mamilos de minha namorada muda crescendo desiguais. Embarcaram todos clandestinos em um navio, bandeira de Malta, que ninguém, nem mesmo o comandante, sabe para onde vai.

    FABRÍCIO MARQUES, 49, é jornalista e poeta, autor de "A Fera Incompletude" (Dobra Editorial).

    ANDRÉS SANDOVAL, 41, é artista gráfico, autor de "Socorram-me em Marrocos" (Companhia das Letras).

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