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    Quando a arte não está nas paredes

    HILARIE M. SHEETS
    DO "NEW YORK TIMES"

    01/02/2015 03h44

    A dança chega a museus

    Numa noite recente de quinta-feira no New Museum, em Nova York, a porta do elevador se abriu para uma galeria no quinto andar onde acontecia uma aula de pole dance (dança do poste). Alguns visitantes pareceram confusos e procuraram a saída, mas outros, em número muito maior, se posicionaram em volta para ver os colaboradores de dança Brennan Gerard e Ryan Kelly aprender movimentos cansativos e hipnóticos do tipo praticado mais frequentemente por strippers ou dançarinos adolescentes no metrô.

    Os dois são artistas em residência na temporada "Choreography" do museu, em que exploram a intersecção entre raça, classe social e sexualidade no pole dance. A pesquisa deles será coroada com uma exposição no museu, a ser inaugurada em 4 de fevereiro e que vai incorporar dançarinos de todas as estirpes -incluindo os de metrô e de dança exótica-fazendo malabarismos em postes paralelos.

    Tendo formação em teatro experimental e balé, Gerard e Kelly estão migrando de espaços de dança para o mundo da arte contemporânea, em busca de plateias maiores, novos patrocinadores e o apoio intelectual de curadores. É uma mudança que dezenas de artistas cênicos estão fazendo, à medida que aumentam os convites vindos de museus.

    Os museus de arte se aventuram com performances ao vivo desde os anos 1960, "mas os espaços mudaram", comentou o coreógrafo Ralph Lemon, cujo trabalho recente no Museum of Modern Art e no Walker Art Center, em Minneapolis, confunde a linha que diferencia um espetáculo teatral de uma instalação apresentada numa galeria. "Hoje os museus oferecem espaços para apresentações que não se limitam apenas aos jardins, subsolos e corredores não anunciados."

    A tendência está se revelando uma maneira certeira de multiplicar o número de visitantes. "Apresentações ao vivo incentivam as plateias a visitar seu espaço com mais frequência", explicou Sam Miller, presidente do Conselho Cultural de Lower Manhattan. "Faz sentido, em termos de reagir ao que os artistas estão fazendo hoje e atrair um público mais diversificado."

    Mas algumas pessoas se perguntam se esse tipo de espetáculo não é uma maneira rápida e barata de gerar divulgação. Qual é o cachê horário de um bailarino, comparado aos custos altíssimos do transporte e dos seguros de obras de belas artes?

    O momento divisor de águas na coabitação entre arte visual e arte cênica aconteceu em 2010, quando Marina Abramovic foi vista por 560 mil visitantes em uma performance silenciosa no átrio do Museum of Modern Art e Tino Sehgal encheu a espiral do Guggenheim com "intérpretes" que habilmente guiaram os visitantes numa conversa. Depois de a coreógrafa Sarah Michelson ter recebido o Prêmio Bucksbaum de "melhor no espetáculo" na Bienal Whitney de 2012, a dança contemporânea, por muito tempo relegada ao descaso nas narrativas do modernismo, começou a ganhar algum grau de paridade com a arte visual nos museus.

    Projetado por Renzo Piano, o novo Whitney Museum, no centro de Manhattan, assumiu um compromisso de longo prazo nesse sentido, dedicando um aumento substancial de orçamento para as performances. Com inauguração marcada para 1º de maio, terá um teatro dedicado, o primeiro do Whitney, com pista de dança e assentos retráteis num espaço nobre no terceiro andar e uma galeria multimídia no quinto. Cada galeria terá pisos de pinho colocados sobre almofadas de neoprene, para proteger os pés dos dançarinos.

    No Museum of Modern Art, que está sendo ampliado por Diller Scofidio & Renfro para incorporar o local do demolido American Folk Art Museum, "a arte cênica terá impacto forte sobre os espaços que estamos projetando", disse Stuart Comer, curador chefe do departamento de arte midiática e cênica. Embora os planos ainda não tenham sido definidos, ele disse que haverá pelo menos um espaço importante para apresentações ao vivo no primeiro piso, entre as galerias.

    "Não queremos que o gênero fique constrito a um gueto", disse Comer. "Nossa coleção inclui dança e performance, além de pintura e escultura. Queremos destacar as raízes profundas dessas formas de arte no século 20."

    Instituição multidisciplinar pioneira, desde os anos 1960 o Walker encomendou 265 trabalhos de performance. A diferença é que "Scaffold Room", de Ralph Lemon, que estreou em setembro, foi planejado com anos de antecedência por curadores de artes cênicas e também artes visuais -não foi alguma coisa inserida por um ou dois dias numa galeria desocupada. "Qualquer coisa que você insira no espaço branco das galerias torna-se bela e escultural", disse Lemon.

    Suas duas artistas mulheres representaram várias personagens provocantes, por meio de monólogos, movimentos e música. Os espectadores puderam assistir aos ensaios abertos, a espetáculos inteiros ou chegar por acaso a versões não anunciadas do espetáculo, de durações diferentes.

    "Muitos museus estão realmente se interessando pela dança e querendo ver como essa forma de arte, que até agora foi apresentada principalmente em teatros e encarada como uma espécie de entretenimento, pode ser integrada à história da arte", comentou Philip Bither, curador sênior de artes cênicas no Walker. O fato de danças serem apresentadas em museus permite que os artistas de dança pensem mais experimentalmente sobre tudo, desde a duração dos trabalhos -alguns duram apenas alguns minutos-até sua relação com os espectadores.

    Se os museus oferecem a artistas cênicos a possibilidade de ter seus trabalhos vistos dentro do cânone da arte moderna, têm havido muitas dores de cabeça. "Ouvimos muitos coreógrafos frustrados dizendo 'cheguei à galeria e o pessoal nem sabia que eu precisava de água ou de um lugar para trocar de roupa', coisas que o produtor normal de artes cênicas saberia, sem que alguém tivesse que lhe dizer", comentou Bither. O sistema elétrico no edifício do Whitney, obra de 1966 de Marcel Breuer, não comporta a iluminação teatral, disse Jay Sanders, organizador da Bienal Whitney de 2012, que teve forte componente de performances. Sanders acabaria sendo contratado pelo museu para ser seu primeiro curador de arte cênica.

    Brian Rogers, diretor artístico do Chocolate Factory, espaço de artes cênicas em Long Island City, é cético em relação à ideia de museus "redescobrirem as artes cênicas", recordando que nos anos 1960 danças de Yvonne Rainer e Trisha Brown no Whitney ajudaram a inaugurar uma nova era mas acabaram saindo de moda, em parte devido à dificuldade de se colecionar esse tipo de trabalho.

    Rogers cita a retrospectiva de Xavier le Roy no outono passado no MoMA PS1 em Queens, em que dançarinos contaram histórias pessoais, como exemplo bem-sucedido da tendência atual. "Mas colocar obras criadas para um espaço de artes cênicas, onde existe um contrato social que rege a interação entre o público e o artista, num espaço barulhento de museu às veze subverte as intenções por trás da obra", ele diz. "Os aspectos de engenharia social do esforço podem parecer fascinantes para um curador de museu, mas me pergunto se isso não será apenas uma tentativa de fazer algo que seja novidade."

    Rogers também teme que Nova York, em especial, que já possui uma rede ampla de espaços para performances, incluindo The Kitchen, Danspace Project, PS122 e Chocolate Factory, "possa estar construindo espaços demais que, no longo prazo, vão precisar receber apoio".

    Johanna Burton, diretora e curadora de educação e relações com o público no New Museum, que organizou a temporada "Choreography", não sabe se qualquer museu já encontrou o ponto correto de equilíbrio entre artes visuais e cênicas. Mas, argumentou, "não estamos apenas fornecendo espetáculos", observando que os museus precisam "garantir que sejam propostas perguntas: qual é o sentido de haver pole dancing em um museu?"

    Ela acrescentou que as pessoas muitas vezes vão a um museu com o desejo de serem desafiadas, não com a expectativa de adorar tudo.

    Muitas pessoas saíram no meio das apresentações de Sarah Michelson no Whitney, coisa que não lhe aconteceu em teatros, mas ela disse que não se sentiu rejeitada. "Eu não estava acostumada com isso. Achei muito instigante", disse Michelson, que vai se apresentar no Walker durante todo o mês de setembro.

    David Henry, diretor de artes cênicas e de mídia no Institute of Contemporary Art, em Boston, aumentou as ferramentas de interpretação para a compreensão da arte contemporânea, incluindo encontros após as apresentações em que os visitantes discutem o que viram. E ele está conduzindo a dança diretamente para dentro das mostras de arte de sua instituição. No outono passado, dentro de uma mostra sobre arte com fibras, o coreógrafo Trajal Harrell e a escultura Sarah Sze encenaram um dueto entre dois dançarinos ligados por dois fios, apresentado numa galeria sem assentos. "Eu queria que as pessoas tivessem espaço para se movimentar e ver o espetáculo do mesmo modo como optariam por ver uma escultura ou pintura", disse Harrell.

    O lado econômico da "aquisição" de uma obra de performance efêmera é algo que museus e artistas ainda estão negociando. Sehgal é citado amplamente como primeiro artista a ter descoberto como vender um evento desse tipo a museus para integrar seus acervos permanentes, traçando normas sobre como essas obras devem ser reapresentadas.

    O trabalho de Sehgal foi a primeira performance ao vivo adquirida pelo Guggenheim. O museu acaba de comprar sua segunda, "Timelining", de Gerrad & Kelly, criada para casais em uma variedade de relacionamentos íntimos; a obra será exibida na rotunda entre junho e setembro. "O museu recebeu um certificado de autenticidade, como seria o caso com um trabalho de Sol LeWitt", disse Gerard. Os artistas criaram diretrizes para a apresentação do trabalho, abrangendo até o cachê deles.

    O museu Walker e Ralph Lemon estão desenvolvendo outro modelo para a aquisição de "Scaffold Room". O museu não vai declarar-se dono da produção física, mas de uma "coleção de memórias" daqueles que participaram e dos que assistiram à obra, disse Bither. As entrevistas dessas pessoas serão incorporadas a um documento que vai descrever a performance.

    Lemon gostaria que os entrevistados fossem chamados de volta ao museu de modo periódico. "Para mim, o que é belo nessa ideia é que, quando esses 'lembradores' se lembram, as histórias orais podem continuar a se metamorfosear. O aspecto efêmero do trabalho pode continuar vivo."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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