• Ilustríssima

    Sunday, 05-May-2024 19:18:02 -03

    A princesa russa que viu e narrou o Reich

    GEORGE VASSILTCHIKOV
    tradução FLÁVIO AGUIAR

    15/02/2015 02h40

    RESUMO Nobre nascida na Rússia no ano da Revolução, Marie Vassiltchikov, ou Missie, cresceu no exílio. Trabalhando para o governo alemão, ela registrou, nos "Diários de Berlim 1940-1945", que a Boitempo lança neste mês, os bastidores da Segunda Guerra, com destaque para a tentativa de matar Hitler na Operação Valquíria.

    *

    A autora deste diário, Marie ("Missie") Vassiltchikov, nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 11 de janeiro de 1917. Morreu de leucemia, em Londres, em 12 de agosto de 1978.

    Era a quarta criança (terceira filha) numa família de cinco. Seus pais, o príncipe Illarion e a princesa Lydia Vassiltchikov, deixaram a Rússia na primavera de 1919, e Missie cresceu, como refugiada, na Alemanha, na França, onde foi à escola, e na Lituânia (que entre 1918 e 1940 foi uma república independente), onde a família de seu pai tivera uma propriedade antes da Revolução e onde, ao final da década de 1930, ela trabalhou como secretária da Legação Britânica.

    Divulgação
    A russa Marie Vassiltchikov, ou Missie, na época em que escreveu os "Diários de Berlim"
    A russa Marie Vassiltchikov, ou Missie, na época em que escreveu os "Diários de Berlim"

    O começo da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, encontrou-a na Alemanha, onde, com sua segunda irmã, Tatiana (agora princesa Metternich), passava o verão com uma amiga de infância de sua mãe, a condessa Olga Pückler, na casa de campo desta, o palácio Friedland, na Silésia. O resto da família achava-se espalhado: os pais e o irmão mais novo, George ("Georgie"), viviam na Lituânia; a irmã mais velha, Irena, em Roma. O irmão mais velho, Alexander, de 27 anos, morrera de tuberculose na Suíça, um pouco antes, naquele mesmo ano.

    Depois da depressão econômica do começo dos anos 1930, era praticamente impossível para um estrangeiro conseguir autorização para trabalhar em qualquer uma das democracias do Ocidente. Apenas na Itália fascista e (mais ainda) na Alemanha nazista o desemprego fora grandemente superado graças a programas públicos de trabalho e, é claro, pelo rearmamento. Possuindo as qualificações necessárias, somente nesses países seria possível para pessoas apátridas (como as garotas Vassiltchikov) ganharem a vida.

    Em janeiro de 1940, as duas irmãs mudaram-se para Berlim, à procura de trabalho. O diário de Missie começa com a chegada de ambas à capital alemã, onde, durante o primeiro inverno da guerra, à parte os blecautes e o severo racionamento de comida, a vida ainda era surpreendentemente "normal". Apenas com a invasão alemã da Dinamarca e da Noruega, em abril daquele ano, a guerra e seus esperados horrores, e logo seus desafios éticos, foram ascendendo ao primeiro plano, até dominarem tudo mais.

    Embora não fosse cidadã alemã, graças à falta de linguistas qualificados, Missie logo achou trabalho: primeiro, no Serviço de Rádio, depois no Departamento de Informações do Ministério do Exterior. Neste, ela trabalhou de perto com um dos núcleos duros dos resistentes antinazistas que viriam a se envolver ativamente no que passou para a história como Conspiração de 20 de Julho.

    A sua descrição dia a dia, às vezes hora a hora, da fracassada tentativa do conde Von Stauffenberg para matar Hitler e do reinado do terror que se seguiu (no qual muitos de seus amigos mais próximos ou conhecidos pereceriam) é o único diário conhecido que dá um testemunho ocular do que aconteceu. Tendo escapado afinal das ruínas da Berlim bombardeada, ela viria a passar os últimos meses da guerra trabalhando como enfermeira num hospital de Viena -de novo sob o bombardeio dos Aliados.

    Missie escrevia seu diário de modo compulsivo. Diariamente ela datilografava um sumário dos acontecimentos. Apenas as narrativas mais longas, como a dos bombardeios de Berlim em novembro de 1943, foram escritas "ex post facto", embora imediatamente depois dos eventos.

    O diário foi escrito em inglês, língua com que tinha familiaridade desde criança. As páginas datilografadas eram guardadas num arquivo em seu escritório, escondidas entre relatórios oficiais. Quando o material se tornava volumoso demais, ela o levava para casa e o escondia por lá ou, às vezes, em casas de campo que estivesse visitando.

    No começo isso era feito tão ostensivamente que mais de uma vez algum de seus superiores disse: "Vamos lá, Missie, ponha seu diário de lado e trabalhe um pouco". Ela tomou precauções mais sérias apenas quando começou a anotar o plano do 20 de Julho. A narrativa desse período era escrita numa taquigrafia pessoal que ela transcreveu somente depois da guerra.

    Embora ela tivesse de abandonar várias casas por causa dos bombardeios, e, mais para o fim da guerra, de fugir da Viena sitiada para salvar a vida, muito do diário sobreviveu, incluindo as passagens historicamente mais essenciais. Faltam apenas partes de 1941 e 1942, e do começo de 1943. Estas foram deliberadamente destruídas ou se perderam -ou ainda se encontram fora de alcance no presente.

    Divulgação
    Soldado mostra o que sobrou das calças de um dos feridos no atentado contra Hitler em 20 de julho de 1944
    Soldado mostra o que sobrou das calças de um dos feridos no atentado contra Hitler em 20 de julho de 1944

    Pouco depois do fim da guerra, Missie datilografou as partes em taquigrafia e redatilografou todo o restante. Essa segunda versão ficou intocada por mais de um quarto de século, até 1976, quando, depois de muita reflexão e muita insistência por parte de familiares e amigos, ela afinal se decidiu a tornar público seu diário. Assim mesmo, ela fez questão de cortar muito pouco do conteúdo e nada mudar de substancial. Todas as modificações se referiram à linguagem, ou ao trabalho comum de edição, ou ainda à troca de iniciais por nomes completos.

    Ela acreditava firmemente que qualquer valor que seu diário tivesse se deveria ao fato de ser completamente espontâneo, honesto e escrito sem reservas, uma vez que originalmente não se destinava à publicação. Seus testemunhos oculares, suas reações e emoções no calor da hora falavam por si mesmos: essa era sua impressão. Tudo perderia muito de seu interesse se algo fosse adulterado por um juízo posterior aos eventos, sem falar na possibilidade de (auto)censura para preservá-la de constrangimentos ou poupar os sentimentos de outras pessoas. Essa versão do diário -a terceira e definitiva- ficou pronta apenas algumas semanas antes de sua morte.

    O leitor poderá ficar estupefato diante da atitude algo ambígua de Missie com relação à guerra em geral, os contendores, os alemães, os Aliados, a Rússia, a União Soviética e seus compatriotas russo-soviéticos (que, a propósito, ela sempre considerou como tais). Mas sendo, como todos nós, uma sincera patriota russa, ela nunca sucumbiu à tentação de identificar a Rússia e os russos com a URSS e o regime bolchevique-soviético e seus representantes oficiais. Ela rejeitava enfaticamente o nazismo e também o comunismo, e pelas mesmas razões.

    Assim, por exemplo, quando se refere aos sofrimentos do povo russo ou a seu heroísmo, ela usa instintivamente o termo "russo". Da mesma forma como escreve instintivamente o termo "soviético" ao se referir às ações mais iníquas da URSS. E sua rejeição de ambos os sistemas, o nazista e o comunista, tinha raízes mais arraigadas do que apenas políticas. Era profundamente moral e ética. Porque, se aquilo que os alemães estavam fazendo na Rússia provocava-lhe indignação -como a qualquer patriota russo-, o mesmo acontecia em relação à perseguição dos judeus praticada pelos próprios nazistas na Alemanha e por seus cúmplices nos territórios ocupados. E o mesmo acontecia diante dos atos de violência praticados pelo Exército Vermelho e o NKVD na Europa Oriental e nas zonas alemãs ocupadas pelos soviéticos.

    O seu chefe no Ministério de Relações Exteriores, Adam von Trott (que seria enforcado pelos nazistas), escreveu numa carta à esposa o seguinte sobre Missie: "Há nela algo [...] que lhe permite pairar muito acima de tudo e de todos. Isso, claro, é um pouco trágico, até mesmo quase inquietante". Trott identificava de modo correto o dilema de Missie na última guerra; apesar de sua sensibilidade em relação a tudo que fosse russo, para ela, que já vivera em vários países e tinha amigos de muitas nacionalidades, não valiam conceitos como "alemão", "russo" ou "aliado". Havia apenas "seres humanos", "indivíduos". Estes, ela os dividia em dois tipos: os "decentes", que mereciam respeito, e os "não decentes", que não o mereciam.

    Ela confiava e se tornava amiga apenas dos primeiros, e reciprocamente. Isso explica por que, embora não fosse uma alemã, ela mereceu a confiança daqueles que planejavam o ultrassecreto atentado contra Hitler de 20 de julho de 1944. Também explica o contínuo sucesso que seu livro encontrou entre os leitores dos países onde foi publicado, bem como o fascínio incontornável por sua personalidade, até hoje, meio século depois dos eventos que ela descreve.

    Uma das recompensas mais afetuosas que recebi, enquanto preparava o original de minha irmã para publicação, foi a pronta resposta e a assistência em tudo (além de, ocasionalmente, a hospitalidade) de todos que procurei, atrás de informações pessoais ou de fundo que se acrescentassem a ele. Isso se referiu ainda a esclarecimentos, fontes ou material fotográfico e tanto por parte de quem tinha conhecido Missie pessoalmente quanto por parte daqueles que não a conheceram. Em alguns dos casos, isso implicava avivar lembranças que as pessoas tinham tentado arrancar da mente, não importa quão admiráveis fossem suas atitudes políticas ou seus comportamentos pessoais naqueles dias de trevas; sua generosidade é digna do maior apreço.

    Nota: Este prefácio foi escrito pelo irmão de Missie para a versão em livro dos diários. Por questão de espaço, as notas originais foram suprimidas ou adaptadas para esta edição da "Ilustríssima".

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024