• Ilustríssima

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    O porto, de Leda Cartum

    LEDA CARTUM
    ilustração ALEXANDRE TELES

    15/02/2015 03h17

    SOBRE O TEXTO Ordenados de modo a formar uma breve narrativa, estes trechos integram o novo livro da escritora de 26 anos, "O Porto", a sair pela Iluminuras. Foram ilustrados em xilogravura pelo artista Alexandre Teles, 35.

    *

    1. O dia todo tinha sido enorme - e a cidade ecoava no nosso corpo com suas cores mornas, os bustos e as galerias: parecia que dava para pegar com as mãos o que se formava no ar. Mas depois, quando nos calamos, de costas eu percebi um estranhamento crescer entre nós e se instalar perverso no escuro. Era como um bicho do mato que entrou sem avisos no quarto de hotel: enquanto deixávamos de nos olhar e nos afastávamos do contato, progressivamente também perdíamos o que tínhamos sido juntos e uma ignorância mútua ganhava lugar. Daí tomei coragem e acendi a luz do abajur do criado-mudo -numa curva dos pescoços voltamo-nos um para o outro: tudo aquilo que construímos se desfez em um segundo, e nos descobrimos completos desconhecidos. A intimidade que até então dispensava o cálculo e desmedia os gestos nessa noite desapareceu: e o que sobrou fomos nós dois sós. Encaramo-nos por muito tempo, mas apenas porque estávamos tão constrangidos que não sabíamos como desviar o olhar. Procurávamos algum traço familiar, qualquer expressão ou movimento que devolvesse o conhecimento perdido -e como não encontrávamos, nada surgia para dar conta da vergonha dos nossos corpos nus.

    Pude te ver naquela noite como se nunca tivesse te visto antes: como se te visse passando pela rua. Te vi de longe, de muito longe, e com a certeza de que esqueceria do teu rosto assim que te perdesse de vista. Mas somos pessoas longas.

    Foi algum tempo, foram minutos, até que o ar marrom avermelhado transbordasse da janela de Florença -e despertamos de um sono líquido, e chacoalhamos a cabeça: nos reconhecemos de pronto, nos deitamos e deixamos, entrançados e cansados.

    Alexandre Teles

    2. Tudo se dispersa entre as horas seguintes àquelas que duram. Tudo o que dura depois derrama no escuro e encharca as roupas secas e a toalha do banheiro. Faz muito tempo que era ontem e estávamos em outro país: no intervalo de um dia inteiro e de um oceano chamado Atlântico voltamos para casa. Tudo chegou cheio de um cheiro forte que não estava aqui antes. À noite, quando a cama antiga nos recebeu, uma voz pouco a pouco cercou o sono e nunca mais foi embora. Procurei nas malas desfeitas e sob as fronhas dos travesseiros mas não encontrei nada ainda.

    Alexandre Teles

    3. O percurso de volta é muito mais curto do que o de ida: já se conhece o caminho traçado e não sobraram expectativas além daquelas que se cumpriram. No entanto voltar demanda tanto mais tempo do que a partida - é preciso enfrentar todos os monstros da memória para aportar de novo. É preciso encontrar o que se tinha sido e reconhecer o que se abandonou: é também necessário perder uma a uma todas as tardes daquela viagem, que ficarão espalhadas no meio da casa em constante desordem. A volta se costura minuciosamente e depois desmancha ponto por ponto, como a busca que ainda não sabe qual é o objeto que está perseguindo.

    Alexandre Teles

    4. Uma viagem traça um arco no espaço. Como pode haver outro tempo além desse que me chama? Como pode ser diferente se escuto com o corpo a madrugada de hoje? O que é que segue correndo mesmo quando já não posso mais alcançar com os olhos? O que sobrou daquele pedaço de terra que deixei? Onde estão todos os dedos que se enroscavam na areia? Hoje não são mais que dez e da areia só sinto o cheiro impregnado no espaço. Amor é o que arrisca tudo em um chamado repetido e sem sentido.

    Alexandre Teles

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