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    Ponto Crítico - Cinema - O afeto perverso

    PEDRO BUTCHER

    22/02/2015 03h18

    "Que Horas Ela Volta?" é um passo interessante na trajetória de Anna Muylaert. Realizadora de comédias que tomam rumos na direção do absurdo, como "É Proibido Fumar", neste novo filme, premiado nos festivais de Sundance (com reconhecimento para o duo de protagonistas) e Berlim (melhor filme, segundo o público, na mostra Panorama), ela parece optar por um caminho mais convencional e comunicativo.

    O longa, porém, é repleto de sutis ousadias. A principal está no tema escolhido: a relação entre empregados domésticos e patrões no Brasil. A cineasta cava para si um tremendo problema: falar de um assunto cheio de nuances e de abordagem particularmente difícil pela complexidade com que opressão, afeto, conflitos sociais e relações profissionais se entrelaçam.

    Mais ainda: trata-se de um tema perfeito para disparar o alarme dos politicamente corretos. E aí as armadilhas são infinitas: qualquer decisão da diretora, que também assina seus roteiros, poderia (e pode) ser alvo de sumária condenação. "Os patrões são caricatos", "a empregada é inocente demais" etc. Por sorte, ela não deixa essa preocupação virar uma camisa de força: toma decisões seguras e assume, sim, uma posição política.

    Aline Arruda/Divulgação
    Regina Casé em cena do filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert
    Regina Casé em cena do filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert

    A segunda ousadia não o seria, fosse outro o contexto, mas, no atual cenário da produção brasileira, o esforço de fazer uma comédia "de cinema", fugindo de padrões televisivos, é um ato de coragem, e também político, que traz para as plateias a oportunidade de desfrutar um outro tempo de comédia, com direito a respiros, emoção e alguma possibilidade de reflexão.

    A situação do filme permite desenvolver certos temas, cuja expressão se dá sob a forma de ações e reações dos personagens, nunca de maneira discursiva. Anna Muylaert faz um movimento difícil, comum em alguns diretores do cinema dito clássico, que é passar da tipificação (sempre necessária na ficção) para a complexidade. Assim, a família formada por pessoas sensíveis e esclarecidas (a mãe trabalha com moda, o pai é pintor), mas que perpetuam situações permeadas por crueldade, ganha contornos bastante convincentes.

    Nesse sentido, "Que Horas Ela Volta?" dialoga fortemente com "Casa Grande", de Fellipe Barbosa, que realiza o mesmo movimento. Ainda inédito em circuito, mas com uma muito bem-sucedida carreira em festivais, "Casa Grande" relata, do ponto de vista de um adolescente, a decadência de uma família rica do Rio de Janeiro. A relação ente patrões e empregados também tem papel fundamental na história, aqui narrada do ponto de vista do "patrãozinho".

    "Que Horas Ela Volta?" começa com Val (Regina Casé) cuidando de Fabinho, filho dos patrões da casa. O título vem da pergunta que o menino faz a respeito da mãe, que está trabalhando. Há um salto no tempo e ficamos sabendo que Val tem uma filha da mesma idade de Fabinho, mas que ela deixou em Pernambuco quando se separou do marido e resolveu vir para São Paulo. É a típica situação da babá que cuida do filho dos outros, mas abandona os seus –quase sempre para poder sustentá-los.

    Depois de mais de dez anos sem falar direito com a mãe, Jéssica (Camila Márdila) avisa que está indo para São Paulo prestar vestibular e pede para ficar com a mãe.

    Não sabe que Val mora num pequeno quarto no fundo da casa onde trabalha. A partir da chegada de Jéssica e da descoberta do "quarto de empregada", visões de mãe e filha entram em choque. A posição da jovem, oposta à submissão da mãe, abala a segurança dos patrões (interpretados por Karine Teles, Lourenço Mutarelli e Michel Joelsas, no papel do Fabinho adolescente).

    Como "Casa Grande", "Que Horas Ela Volta?"consegue dar conta do afeto presente nessa relação, em muitos casos verdadeiro, sem deixar de enxergar a profunda perversidade que há no aproveitamento desse afeto para perpetuar uma exploração que supera o trabalho –a exploração de uma vida.

    São filmes que encaram problemas difíceis e, quase sempre, o fazem com dignidade. E que, num gesto muito bem-vindo, não querem se fechar em si, mas buscar um diálogo com as plateias, sejam elas do país ou do mundo.

    PEDRO BUTCHER, 43, é jornalista e crítico de cinema.

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