• Ilustríssima

    Friday, 03-May-2024 19:54:47 -03

    Dois poemas de Eucanaã Ferraz

    EUCANAÃ FERRAZ
    ilustração SÉRGIO SISTER

    22/02/2015 03h13

    SOBRE O TEXTO Os poemas aqui publicados integram o livro "Escuta", a sair pela Companhia das Letras em março.

    *

    Foi-se a vontade de ir ao Egito

    Todos foram unânimes: precisava parar de fumar.
    Foi o que fez.

    Com isso parou também de amar o próximo
    como a si mesmo e passou a duvidar
    de que um dia tenha amado a si mesmo.
    Nunca se viu outra vez com sua mãe
    e seu pai na fotografia em que parecia amar
    e ser amado muito antes de haver fumado
    mas quem sabe pressentisse com a pureza
    do sorriso o fumante que seria.
    Em parar de fumar seu cabelo perdeu
    a graça e suas piadas perderam o brilho.
    Perdeu amigos sem sentir pena. Perdeu
    esboços de poemas e o pudor de dizer não.
    Disse adeus ao prazer físico e místico de olhar
    as nuvens pela janela do avião como anéis
    de fumaça. Arruinou-se sobretudo certo dom
    de estar feliz que não excedia a simplicidade
    necessária para que o bem gratuito
    não se quebrasse –mas agora as horas
    parecem porcelanas raras estilhaçando
    num daqueles espetáculos em que o mal
    abarista equilibra pratos no alto de uma vara
    que ele pousa na ponta do queixo
    ao som de uma música chim, algo assim.
    Foi-se a vontade de ir ao Egito.
    Perdeu o gosto das aves e da companhia dos cães.
    Mas, sobretudo, passou a sonhar insistentemente
    com rãs que invadem seus pulmões sua casa.

    Sérgio Sister

    Orelhas

    Estão certas todas as canções banais letras convencionais
    seus corações como são de praxe; estão certos os poemas
    enfáticos inchados de artifícios à luz óbvia da lua
    ou de estúpidos crepúsculos; os sonetos mal alinhavados
    toscos estão certos bem como as confissões íntimas
    não lapidadas reles nem polidas; ouçamos o que dizem
    sobre qualquer coisa; dizem não vai dar certo; repetem;
    e se o verso é trivial é o mais sagaz quanto mais pueril
    mais seguro quanto mais frouxo mais sólido quanto
    mais rasteiro mais a toda prova e quanto mais barato
    e quanto mais prolixo o alexandrino mais legítimo;
    as formas desdentadas vêm do fundo; as odes indigestas
    dizem tudo; o verso oco não traz menos que a verdade
    nua e ponto. Estão certos os romances de aeroporto;
    a quem busca um modelo procure o estúpido; se deseja
    uma estrela de primeira grandeza escolha o simplório
    é o que digo não busque senão na aberração a sinceridade
    e no disparate a franqueza; prêmios literários não passam
    de hipocrisia; estiveram desde sempre certos os erros
    de tipografia; o contrassenso deve ser o mandamento
    de quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo
    sem pudor; sim a saudade arde exatamente como
    nos roteiros dos filmes mas só as fitas mais chinfrins
    e com fins infelizes não mistificam e dizem de antemão
    o que seremos: redundância errância perfeição.

    EUCANAÃ FERRAZ, 53, professor de literatura brasileira na UFRJ e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles, publicou em 2012 a coletânea de poemas "Sentimental" (Companhia das Letras), premiada com o Portugal Telecom.

    SÉRGIO SISTER, 66, é artista plástico.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024