• Ilustríssima

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    Uma novela de Mircea Eliade

    MIRCEA ELIADE
    tradução FERNANDO KLABIN
    ilustração GABRIEL CENTURION

    08/03/2015 03h55

    SOBRE O TEXTO O trecho acima abre a novela "Dayan", que a Editora 34 publica em maio no livro "Uma Outra Juventude", do autor romeno.

    *

    Mal haviam chegado ao fim da rua, quando Dobridor, depois de voltar-se pela segunda vez para se certificar de que não havia ninguém atrás deles, perguntou:
    - Você não notou nada de estranho no Dayan?
    Dumitrescu encolheu os ombros, afetando indiferença.
    - Você sabe que esse personagem não me interessa -disse ele, avançando, sem se deter, com o mesmo passo lento, calculado, como se quisesse economizar energia.- Não gosto de gênios, nem de premiados -acrescentou.
    - Eu sei, mas desta vez é diferente -disse Dobridor, baixando a voz.- Algo bastante misterioso. Na verdade -retomou ele, depois de olhar para trás mais uma vez- algo que me parece inexplicável. E até suspeito...
    Dumitrescu estacou bruscamente e o olhou com curiosidade, com um sorriso forçado.
    - Dayan, suspeito? -exclamou.- Melhor aluno da turma desde o primeiro ano primário, a poucas semanas de receber o diploma summa cum laude, a três ou quatro meses do mais brilhante doutoramento, a um ano da cátedra que será criada só para ele, a três anos da Academia de Ciências, a sete anos do...
    - Não sei se é realmente suspeito -interrompeu-o Dobridor-, mas é bastante misterioso. Em todo caso, me parece inexplicável. Foi ontem à tarde, na aula de geometria, quando ele estava na lousa, que eu percebi pela primeira vez; sabe, o Dorobantu o chamara para nos explicar...
    - Sei: "ô, Dayan, venha explicar para eles, que você explica melhor do que eu!". O eterno bordão, com seu arremate infalível: "ô, Dayan, explique para eles, que se esses palermas não entenderem nem a você, vou mandar todos para o trabalho braçal!".
    - E me admira que ninguém além de mim tenha percebido -continuou Dobridor.- Até fui verificar hoje de manhã. Passei várias vezes na frente dele, depois cheguei bem perto e, fingindo não ter acompanhado muito bem sua demonstração, pedi que desse algumas explicações. Aproveitei para observá-lo com atenção, e acho que ele desconfiou, porque corou e começou a gaguejar. Por isso eu disse que me pareceu suspeito. Por que teria corado ao perceber que eu o observava com atenção, que eu observava principalmente seu olho esquerdo?...
    - Mas por que você o observava com tanta atenção? -interrompeu-o Dumitrescu.
    Dobridor deu um sorriso enigmático.
    - Porque, desde que eu conheço o Dayan, ele sempre tapou o olho direito com uma venda preta, que agora lhe tapa o esquerdo.
    - Não é possível! -interrompeu Dumitrescu de novo.
    - Pois estou lhe dizendo que já verifiquei várias vezes. Até há poucos dias, seu olho esquerdo era o bom, e agora é o direito.
    Dumitrescu ficou pensativo por alguns instantes.
    - Isso quer dizer... -começou a falar em tom grave, depois de umedecer os lábios- isso quer dizer que ambos os olhos são bons.
    - E daí?...
    - E daí que ele usa a venda por capricho, para parecer mais interessante... Ou talvez -acrescentou depois de uma pausa, frisando as palavras- por outros motivos.
    - Por isso eu dizia que me pareceu suspeito...
    - Temos que passar essa informação adiante -continuou Dumitrescu, baixando a voz.
    - Também pensei nisso -murmurou Dobridor-, que devíamos informar...
    - Mas precisamos agir com cuidado -retomou Dumitrescu depois de engolir em seco várias vezes, com dificuldade, até conseguir umedecer os lábios. - Muito cuidado -repetiu.- O Dayan não pode desconfiar de nada, se não ele é capaz de trocar a venda de novo...

    Gabriel Centurion
    Aquarela de Gabriel Centurion
    Aquarela de Gabriel Centurion

    Na manhã seguinte, o céu estava anormalmente escuro, e todas as lâmpadas estavam acesas na sala do reitor. O jovem bateu várias vezes à porta, aguardou alguns instantes, abriu-a cuidadosamente e entrou. Postou-se na soleira, como que ofuscado pela luz artificial.
    - O camarada secretário disse que o senhor mandou me chamar -murmurou.
    Irinoiu o observou longamente, perscrutador, como se nunca antes tivesse tido a oportunidade de olhá-lo à vontade. Passado um instante, fez um sinal para que se aproximasse.
    - Constantin Orobete -perguntou-lhe-, desde quando o chamam de Dayan?
    O jovem corou e apertou os dois braços contra o corpo.
    - Desde 1969, depois da Guerra dos Seis Dias 1, quando todos os jornais publicaram fotos do general Moshe Dayan. O senhor sabe, por causa da venda preta...
    Irinoiu tornou a fitá-lo atentamente, com um sorriso amargo, incrédulo.
    - Mas por que você usa a venda preta?
    - Por causa de um acidente. Um vizinho me feriu no olho, sem querer, com um cabide. Ele tinha acabado de comprar numa liquidação, era um cabide grande, de madeira, e o estava levando para seu apartamento, carregando-o no ombro. Mas na frente da porta ele se virou de repente, num movimento brusco, e me atingiu. Não tinha visto que eu estava ali, no corredor, encostado na parede, esperando. Esperando ele passar e entrar com o cabide em casa...
    - E nunca se curou?
    - Não. Não tinha cura. A madeira esmagou meu olho e penetrou até o fundo da órbita... Por isso tenho que usar a venda preta. Não puderam colocar um olho de vidro.
    - Qual foi o olho? -perguntou Irinoiu, levantando-se.
    O jovem levou a mão direita à testa e esfregou o rosto molemente.
    - Este olho que o senhor está vendo -murmurou constrangido.
    Irinoiu aproximou-se dele, fitando-o com um olhar cada vez mais penetrante.
    - O olho esquerdo, portanto -disse, ressaltando cada palavra.- Contudo, seu dossiê, que acabo de folhear -precisou, apontando para a mesa-, inclui um atestado do hospital Coltea 2 onde consta que um objeto de madeira, não se menciona qualquer cabide, um objeto pontiagudo de madeira destroçou seu olho direito...
    Orobete baixou a cabeça, desalentado.
    - Vamos, tire a venda!
    Observava-o com curiosidade, acompanhando cada um de seus gestos. Quando o jovem soltou o elástico e retirou cuidadosamente a venda, Irinoiu franziu a testa, recuou um passo e virou a cabeça. A órbita era profunda, escarlate, com um farrapo sanguinolento de pálpebra dependurado, flácido e inútil.
    - Pode recolocar a venda -disse, voltando para a mesa.
    Folheou o dossiê, tirou uma página amarela e a estendeu ao rapaz.
    - Caso tenha esquecido os detalhes do acidente de 8 de setembro de 1963, leia o atestado emitido pelo Departamento de Cirurgia do hospital Coltea três dias depois, em 11 de setembro.
    O jovem, tremendo, pegou a folha amarela com uma das mãos e logo a passou para a outra, sem olhar o que dizia.
    - Leia! -ordenou Irinoiu. - Você mesmo vai se convencer. Olho direito. Leia bem! Olho direito!

    Notas do tradutor: 1. O conflito armado entre Israel e a frente árabe, formada pelo Egito, a Síria e a Jordânia, ocorreu não em 1969, mas em junho de 1967.
    2. Hospital mais antigo de Bucareste, fundado em 1704.

    MIRCEA ELIADE (1907-86) é escritor e historiador de religiões romeno.

    FERNANDO KLABIN é tradutor e mestrando em Letras na USP.

    GABRIEL CENTURION, 36, é artista plástico. Participa de exposição coletiva na galeria Artur Fidalgo, no Rio, até 24/4.

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