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    Ponto Crítico - Exposições - Abstração simulada

    TIAGO MESQUITA

    15/03/2015 03h15

    Nos filmes de Sarah Morris, o tráfego de automóveis, pessoas e imagens é intenso. Tudo se contamina. Os seus motivos são sugeridos pelas grandes cidades. Nas exposições da artista em São Paulo, ela se apropria de elementos da arquitetura, situações urbanas e padrões decorativos das maiores metrópoles brasileiras.

    Sarah Morris nasceu na Inglaterra em 1967 e foi identificada com o grupo de artistas britânicos que fez sucesso nos anos 90. Apesar disso, ela se formou nos Estados Unidos e o seu trabalho é profundamente americano. Lida com uma imagem artificiosa, um colorido sintético, feito com esmalte. Tem algo de abstração e algo de simulação.

    O filme "Rio" (2012), exibido na galeria Fortes Vilaça, era o carro-chefe das mostras. As pinturas de "Galeria do Rock", na galeria White Cube até 28/3, têm parentesco com outra série mostrada em Londres em 2013. Na Inglaterra, ela trabalhou a partir de formas cariocas, aqui mostra pinturas paulistas.

    "Rio" não é um documentário, tampouco ficção. É uma colagem de imagens fragmentadas do Rio de Janeiro. A ordem dessas imagens repete, mais ou menos, a ordem de dois dias. O filme se inclui na longa tradição das notas de viagem de estrangeiros no Brasil. Ele começa em uma lanchonete, descrevendo a primeira refeição dos trabalhadores, e termina tarde da noite, em um desfile de escola de samba.

    Lalo de Almeida/Divulgação
    Vista do morro Dois Irmãos a partir da praia do Arpoador no filme "Rio", de Sarah Morris
    Vista do morro Dois Irmãos a partir da praia do Arpoador no filme "Rio", de Sarah Morris

    A música corre tensa, repetitiva, monótona. São loops de sintetizador que se repetem e se alternam. É marcada, tem destino e ritmo certo, muito diferente da deriva de imagens que passa de um lugar a outro sem sobressaltos. A artista repete no filme as sobreposições que faz em algumas pinturas.

    O seu ponto de vista é assumidamente incompleto, de quem não sabe direito o que acontece, mas olha com curiosidade. Por isso, os planos lembram as perspectivas oblíquas de Edgar Degas (1834-1917). Sobretudo nas telas em que cenas de balé misturam o palco, a plateia e a coxia, criando outro sentido para a peça. O modo como Sarah Morris decupa as cenas também muda o sentido do que é filmado.

    Uma sequência do filme é particularmente reveladora. Depois de passar pela praia, pelo gabinete do prefeito, por um baile funk, a câmera se encontra em um estúdio da rede Globo, onde a atriz Camila Pitanga é maquiada.
    A cena é amena, descreve um dia corriqueiro. Logo depois, a atriz reaparece, mas dessa vez na tela da TV, contracenando com Paolla Oliveira em uma novela. Em seguida, as duas são capturadas novamente pela câmera, com o mesmo figurino, sentadas em uma mesa, conversando. Não sabemos quem está lá. Podem ser as atrizes ou as personagens. Mas talvez não importe, a imagem de Sarah Morris é especular, e através do espelho ninguém é o que era antes, os papéis são trocados. O resultado é muito interessante.

    Isso se repete no tratamento das formas geométricas nas pinturas da White Cube. Não por acaso, o título da exposição é um trocadilho: "Galeria do Rock". De saída o sentido das telas já é inexato. Embora feitas de formas geométricas simples, elas não são exatamente abstratas. Sugerem aspectos de algum lugar ou situação conhecidos, que dá nome às telas.

    Os trabalhos são rigorosamente estruturados. Muitas vezes, são divididos em um gradeado regular, de onde ela posiciona ou desloca formas com contorno forte e colorido vibrante. Morris muda as formas de lugar, as secciona e atribui uma cor contrastante a cada uma das partes. Ela as embaralha, sugere novas relações que impedem que reconstruamos qualquer aspecto mais regular. O colorido reforça a fragmentação.

    A artista parece interessada na maneira como se dão as contaminações. Nas transformações que ideias e projetos regulares sofrem ao serem usados. Isso a aproxima da crítica à ideia de forma pura, neutra, associada a um certo tipo de modernismo. Infelizmente, quando olhamos cada pintura individualmente, sem nos preocupar com as ideias e o acervo histórico e social que ela mobiliza, não sobra muito. Para não ser injusto, diria que a artista acerta nos trabalhos em papel e nos cartazes.

    Desconfio que ela sinta vontade de aproximar as vanguardas da decoração das estações de metrô de São Paulo, dos ordinários padrões gráficos da lateral de ônibus. O esforço é produtivo. No entanto, essa simulação de abstração, que manteria uma distância irônica do trabalho, revela-se como a abstração geométrica mais convencional e decorativa.

    TIAGO MESQUITA, 36, é crítico de arte.

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