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    A linguagem oculta das ruas

    EDWIN HEATHCOTE
    DO "FINANCIAL TIMES"

    15/03/2015 13h00

    Cada cidade tem um código visual e cinematográfico específico para definir sua paisagem. Há os monumentos - Torre Eiffel, Big Ben, Empire State Building e assim por diante -, mas nas ruas existem marcadores de identidade visual urbana tão fortes quanto os grandes monumentos, e que na verdade exercem impacto muito mais forte sobre a vida cotidiana, como os fragmentos que formam o pano de fundo diante do qual vivemos nossas vidas públicas.

    Todas as cidades talvez sejam construídas usando as mesmas coisas, ou ao menos coisas muito semelhantes, mas a maioria delas desenvolve uma linguagem de objetos quase única. Se um diretor de arte cinematográfico deseja evocar uma rua inglesa, uma cabine telefônica e uma caixa de correio vermelhas servirão muito bem; para Nova York, um carrinho de cachorro quente e uma grade da qual escapa ar quente fazem o mesmo papel; em Paris, uma coluna publicitária e uma grade de metrô com ornamentos Art Déco.

    O mobiliário urbano e a arquitetura intersticial que povoam os pavimentos definem a experiência de uma caminhada pela cidade. Vivemos em nossas casas, mas nos envolvemos com a cidade por meio de suas ruas - habitamos a metrópole diante de um pano de fundo formado por coisas que, por onipresentes, muitas vezes se tornam quase invisíveis - até que viajamos, e começamos a perceber agudamente as pequenas diferentes.

    É uma experiência muito diferente percorrer o pavimento de uma praça da era georgiana em Londres, a superfície arenosa de Birdcage Walk, os paralelepípedos de Montmartre, as placas monocráticas de pavimentação à beira da praia no Rio de Janeiro ou o asfalto semiderretido da Cidade do México. As superfícies importam. Os padrões inscritos no pavimento, a maneira pela qual as superfícies se desgastam, pela qual a chuva escorre para o meio-fio, formando poças que refletem a luz.

    Crianças brincam saltando sobre os intervalos entre as pedras do calçamento; o pavimento se torna parte de suas brincadeiras, em forma de pista de amarelinha, ou como moldura para superstições. A aparência muda se você estiver de skate, de patim, de cadeira de rodas, de buggy - pequenas variações de textura alteram radicalmente a natureza de nossa interação.

    No entanto, a despeito das diferenças que até mesmo a menor das mudanças pode fazer para a nossa percepção da cidade, essa paisagem urbana é aquilo a que o escritor Georges Perec se referiu como "l'infra-ordinaire", o oposto do extraordinário. É a paisagem do cotidiano e, precisamente por conta de sua familiaridade, se torna algo que nem percebemos.

    Os arquétipos da rua são, no entanto, muito longe de banais. No Reino Unido e na Holanda, há postes de atracação feitos de antigos canhões. Há marcos de numeração que poderiam resultar em sentença de morte para as pessoas que os removessem de suas posições, no passado. Há cabines telefônicas projetadas por Giles Gilbert Scott, o arquiteto que projetou a usina de energia de Battersea, e elas tomam por base uma tumba desenhada por Sir John Soane.

    A rua é essencial porque é uma propriedade comum, o último baluarte de vida pública que nos resta. É a paisagem da democracia e também um templo para o protesto. Quando os manifestantes na Paris de 1968 arrancavam as pedras do calçamento para jogar na detestada polícia de choque, diziam "sous les pavés, la plage" ("sob o pavimento, a praia"). As pedras tinham um leito de areia que surgia quando eram arrancadas - a natureza utópica da cidade exposta por meio da remoção de camadas.

    Os protestos nos lembram da rua como fórum de manifestação e revolta. Ruas e seu mobiliário urbano são projetados para um público ideal, mas também podem servir como veículos de controle. O barão Haussman famosamente concebeu as ruas de Paris como condutos para as forças armadas, rotas pelas quais um exército poderia marchar a fim de reprimir as incessantes revoluções da cidade, e que seria difícil bloquear por meio de barricadas. Mas os communards [os membros da Comuna de Paris, que se rebelou contra as autoridades em 1871] resistiram aos soldados usando o material das ruas mesmas, construindo barricadas com paralelepípedos.

    Uma nova paisagem urbana de segurança, uma versão contemporânea da militarização de Haussman, está reemergindo nas cidades modernas, onde novas formas de mobiliário urbano brotam como forma de tentar resistir a toda espécie de coisa - skates, mendigos dormindo, carros-bomba. O chamado "Anel de Aço", da City de Londres, introduz uma linguagem de medo, um sistema de controle que torna o último baluarte daquilo que é público uma espécie de portão de segurança de aeroporto. Imensos e horrendos postes, com cinturões de pontas metálicas, servem como posição para câmeras de segurança em múltiplas cidades britânicas.

    Blocos de pedra que parecem ser bancos na verdade servem para proteger as praças diante de edifícios corporativos contra carros-bomba, e suas extremidades são protegidas com protuberâncias para impedir que skatistas os usem para manobras. Mourões são projetados para resistir a carros-bomba. A base do Cheesegrater, na City de Londres, pode ser um espaço público, mas está protegida por uma barragem de dispositivos de defesa.

    A nova linguagem do mobiliário urbano se ocupa menos da utilidade pública que da imposição de controle. A linguagem das cabines telefônicas, caixas de correio, luzes públicas e fontes, decorativa no passado, e portadora de invenções cujo objetivo era melhorar a vida humana, deu lugar à arquitetura da segurança e da vigilância, sob a qual cada cidadão é visto como potencial terrorista. É uma reversão radical da natureza da esfera pública, mas mostra com que intimidade o mobiliário urbano reflete as mudanças do espaço público.

    A questão é, que espécie de significado nossa paisagem urbana contemporânea comunica? Ao longo da história dos espaços públicos, marcadores urbanos foram usados para transmitir um senso de lugar, de centro, de conexão e contexto. Um marco de quilometragem expressa distância mas é também um marcador de lugar. Um mercado ocupa o centro de um assentamento, uma bomba ou fonte de água se torna um ponto de encontro, um lugar para beber, dar água aos animais ou lavar as mãos.

    Uma caixa de correio representa uma conexão para com uma rede mais ampla, uma sociedade. É um nódulo, mas um nódulo que porta o monograma do rei ou rainha, uma expressão do poder do Estado e também um objeto sacrossanto; violar uma caixa de correio é um crime estranhamente sério, e mover um marcador de quilometragem de seu lugar representa uma rejeição da ordem. E onde estaria a sociedade sem ordem?

    E há também uma rica camada do que poderíamos designar arquitetura intersticial, as barraquinhas de mercado, bancas de jornais, carrinhos de comida, cachorro quente, frutos do mar, os pequenos tabuleiros dos vendedores de nozes. Em larga medida, eles estão entre os elementos que compõem a experiência da cidade, mas raramente são encarados como arquitetura. Em lugar disso, representam uma série improvisada de desdobramentos que evoluíram em busca da máxima eficiência. E quanto às grades que delimitam uma praça de Londres, ou os pissoirs [mictórios públicos] que caracterizam as cidades belgas como lugares nas quais as pessoas se dedicam muito a beber cerveja? Os postos de estacionamento de bicicletas e os parquímetros, as caixas de câmbio e as placas de rua?

    Essa camada expressa a história dos desejos, dos medos, do espírito empreendedor, e a atitude de uma cidade para com a privacidade. Mas a coisa mais intrigante é que tudo isso expressa simultaneamente a cidade de cima para baixo e de baixo para cima. Os adornos do poder - aparelhos de segurança, grades, caixas de correio, cestos de lixo, marcadores de propriedade privada, parquímetros e placas - se tornaram os acessórios de uma cidade civilizada. Mas o outro lado, as barracas dos vendedores de comida e camelôs, são expressões da cidade nascente, onde o mobiliário urbano e o urbanismo se encontram, e dão a qualquer rua sua imprevisibilidade e seu espírito.

    O design em geral concentra seu poder de relações públicas em mobiliário para as casas. O mobiliário urbano sugere que a esfera cívica, nosso segundo lar, pode ser um veículo muito mais rico para transmitir o verdadeiro significado da vida contemporânea. Como sempre, a verdade está na rua.

    EDWIN HEATHCOTE é crítico de arquitetura do "Financial Times".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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