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    Para os fotógrafos sem teto, lugar de honra em Paris

    ALISSA J. RUBIN
    DO "NEW YORK TIMES", EM PARIS

    18/03/2015 15h53

    As imagens capturam uma Paris diferente daquela que os turistas amam: detritos em um saco de lixo que podem ser tomados por uma flor flutuando na água; um túnel úmido se abrindo para uma avenida arborizada e tomada pela luz; uma figura de cabelos longos e com um casaco pesado mostrada em silhueta no reflexo de uma janela, profundamente solitária.

    Que essas imagens estejam expostas ao nível do olhar, na grade de ferro que cerca o histórico edifício da prefeitura no centro de Paris, não constitui surpresa, na capital mundial da fotografia.

    O incomum é que, graças a uma confluência de interesses cruzados muito caracteristicamente francesa, os fotógrafos são moradores de rua que receberam câmeras e orientação técnica de uma organização assistencial. O retrato de Paris que eles oferecem é surpreendentemente belo, tocado menos pelas dolorosas circunstâncias dos artistas do que pelo anseio por uma fuga à suas sombrias existências.

    Dmitry Kostyukov - 4.mar.2015/The New York Times
    Um homem passa em frente a uma das fotografias expostas diante da prefeitura de Paris
    Um homem passa em frente a uma das fotografias expostas diante da prefeitura de Paris

    "É o negativo e o positivo", disse Lorenzo, 55, um dos fotógrafos, que como a maioria dos entrevistados preferiu não revelar seu sobrenome.

    Ele estava falando sobre uma de suas fotos mais fascinantes: uma imagem registrada de dentro de uma passagem subterrânea escura que se abre para uma avenida de árvores que estão perdendo as folhas. A luz e sombra que se alternam, a obscuridade e a possibilidade, a curva do teto da passagem subterrânea e as linhas retas dos troncos das árvores, lembram os contrastes capturados por outro fotógrafo parisiense empobrecido, Eugène Atget –ainda que este tenha morrido há muito tempo.

    A exposição na prefeitura, que inclui 27 imagens, é apenas o mais recente exemplo de como política e arte podem se entrelaçar na França. Os políticos franceses há muito ganham prestígio por meio de seu apoio às instituições artísticas –museus e bibliotecas, teatros e centros culturais– e muitos artistas ganham a vida por meio de programas culturais financiados pelo governo.

    Nos Estados Unidos, uma prefeitura provavelmente não promoveria uma exposição de arte que pudesse atrair atenção para um dos problemas mais intratáveis de uma cidade. Mas em Paris, isso aparentemente não é preocupação, especialmente porque as fotos não mostram os moradores de rua, mas sim foram tiradas por eles, o que lhes confere o status de artistas, ainda que apenas temporariamente.

    Também ajuda que Annie Hidalgo, a prefeita parisiense, tenha feito da construção de mais moradias para pessoas de baixa renda um objetivo central de sua administração, e que tenha expressado abertamente sua preocupação com o crescente número de moradores que dormem sobre cobertores empilhados nas entradas de edifícios e saltam de parque a parque em uma das mais elegantes e ricas cidades do planeta. Há entre 11 mil e 12 mil moradores de rua em Paris, cerca de dois terços dos quais abrigados em refúgios temporários a cada noite e um terço vivendo o tempo todo nas ruas, de acordo com Dominique Versini, subprefeita encarregada dos serviços municipais aos cidadãos mais vulneráveis, entre os quais crianças e idosos.

    O projeto de fotografia foi ideia de Elisabeth Tiberghien, professora aposentada que decidiu colocar em prática um desejo já antigo de ajudar os moradores de rua. Ela começou como voluntária na Sociedade de São Vicente de Paula, uma organização de caridade católica dedicada a ajudar os pobres, e depois criou sua própria ONG, a Deuxième Marche, ou "segundo passo". Ela obteve a ajuda de amigos e conhecidos para formar o conselho da organização e abriu um pequeno escritório que o grupo usou para ajudar a tirar 150 pessoas das ruas e colocá-las em moradias subsidiadas.

    Com a ajuda de um dos integrantes do conselho, ela se associou ao Wipplay.com, um site de fotografia que, em colaboração com a Olympus, concordou em fornecer câmeras digitais à organização, modelos simples da Olympus, para distribuição aos moradores de rua interessados em fotografar. Ela contatou as pessoas com quem trabalhava ou conhecia por meio de outras organizações de assistência aos pobres, e 15 homens e mulheres se apresentaram como voluntários para usar as câmeras e tirar fotos durante um mês. Apenas dois deles não concluíram o projeto.

    Tiberghien também convenceu um fotógrafo profissional, Jean-Paul Lozouet, que usualmente toma por tema as artes cênicas, a instruir os fotógrafos, muitos dos quais sofrem de doenças mentais e, em alguns casos, alcoolismo. A maioria deles agora dispõe de alguma forma de abrigo, com a ajuda da Deuxième Marche.

    Dmitry Kostyukov - 4.mar.2015/The New York Times
    Um homem observa uma das fotografias expostas diante da prefeitura de Paris
    Um homem observa uma das fotografias expostas diante da prefeitura de Paris

    Os participantes foram convidados a fotografar de 17 de novembro a 20 de dezembro, e depois Lozouet baixou as fotos para seu computador e fez um corte inicial, reduzindo os milhares de imagens a algumas poucas centenas. A Wipplay, que organiza concursos de fotografia, solicitou aos visitantes do site que votassem em suas imagens favoritas. Um júri que incluía especialistas em fotografia, artistas e um representante da prefeitura selecionou as 27 imagens da mostra. A Deuxième Marche está vendendo cópias em papel das imagens selecionadas por Lozouet, pagando metade do dinheiro aos fotógrafos e usando o resto dos proventos para pagar o Wipplay pelos serviços de votação digital e para cobrir os custos da exposição. Até agora, cerca de 40 cópias foram vendidas; as maiores saem por cerca de US$ 250, e as menores por US$ 150. Empresas patrocinadoras também doaram dinheiro para o projeto.

    Diversos dos fotógrafos de rua disseram que gostam de passar pela praça diante da prefeitura e ver os transeuntes contemplando suas fotos. "É muito empolgante ver suas reações, de verdade", disse Lorenzo, um homem alto e magro, vestido em jeans puídos e usando cabelos um tanto longos.

    Ele até agora vivia saltando de "empreguinho" a "empreguinho", no setor de construção e como carregador de caminhões frigoríficos. Algumas de suas fotos mostram os atracadouros à beira do Sena, onde ele costumava dormir antes de conseguir um apartamento subsidiado. Outra imagem mostra um homem mais velho sentado em uma cadeira metálica no Jardim das Tuileries e se inclinando na direção de uma estátua de leão, como se os dois estivessem conversando.

    Outro fotógrafo do grupo, que usa o nome Cliq-claque, tirou 400 fotos, muitas delas naturezas mortas. "Do lado de fora, você sabe como é, a pessoa tem tempo, e há dias em que eu me sentia um pouco bloqueado pelas coisas, um pouco triste", ele diz. "Mas tentei mostrar as coisas com alegria."

    Na foto de uma lata de lixo por Clic-claque, as dobras translúcidas do saco de lixo que reveste o interior parecem quase água, e as cascas de laranja e guardanapos rosa amassados jogados no lixo evocam pétalas de flores –um lembrete ao espectador de que mesmo os detritos da vida podem ser belos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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