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    Ponto Crítico - Teatro - Mal-estar e histeria

    LUIZ FERNANDO RAMOS

    22/03/2015 03h07

    A segunda MIT-SP reuniu, sobretudo, espetáculos europeus. A maioria eram estreias da década passada, mas que se provaram, ainda, índices da tendência de expansão da forma teatral para muito além do drama, indo ao encontro de uma fusão com o cinema e as artes visuais e performativas.

    De fato, o teatro contemporâneo mesmo quando se serve de dramaturgias consagradas -e 5 dos 12 espetáculos apresentados eram visitas a textos icônicos do drama moderno- trai um mal-estar ao lidar com a tradição dramática. Em cinco destes, além de personagens femininas histéricas, no sentido cultural de fins do século 19, para referir sintomas de sexualidade reprimida, há recorrências que, mais do que reapresentar aqueles dramas consagrados com novas leituras, como era a tradição modernista, denotam a ansiedade e incômodo diante deles.

    De algum modo a histeria, tomada aqui como metáfora, e não no sentido já anacrônico da psicanálise, aparece como sintoma de desvio, efeito colateral de um impedimento. A tradição dramática, no teatro, surgiria como um morto cujo fantasma resistisse a desaparecer. Nessa constatação as encenações se tornariam réquiens, senão do teatro (que afinal sobrevive para reiterar sua habilidade de morto-vivo, o que sempre renasce), certamente do modo dramático de realizá-lo.

    A angústia e a melancolia que movem essa toada histérica são só sintomas, mas se traduzem em procedimentos identificáveis: pulsão performativa exacerbada, sempre articulada pela repetição, pelo enfatizar do ato representativo na atuação frontal em que atores mais reiteram o ato de enunciação, encarando o público, do que os sentidos ficcionais internos à trama em curso. Isto vai além do distanciar-se crítico do teatro épico, e extravasa um mal-estar com a forma dramática.

    O mesmo fenômeno expansivo pôde ser observado de outro ângulo, na montagem do badalado holandês Ivo van Hove. Como outros encenadores hoje (Robert Lepage, por exemplo, ou, no Brasil, Paulo de Moraes e Márcio Abreu), ele constrói dramaturgias cênicas, trabalhando junto a dramaturgos e artistas visuais, para friccionar o dramático contra a matéria espetacular e, assim, encontrar novos modos de viabilizar o drama.

    Ou no caso na inglesa Katie Mitchell, que se une ao designer de vídeo Leo Warner para propor uma integração radical dos procedimentos cênicos aos cinematográficos.

    Lenise Pinheiro/ Folhapress
    Cenário da peça "Stifters Dinge", de Heiner Goebbels
    Cenário da peça "Stifters Dinge", de Heiner Goebbels

    No resultado, brilhante, os traços histéricos da personagem senhorita Júlia na peça de Strindberg, que no original refletem a ambição naturalista de revelar pulsões sexuais reprimidas, migram para os corpos dos atores. Acumulando as funções de operadores da filmagem, eles têm que se desdobrar à vista do público, oscilando passos acelerados por trás das câmeras com pausas estudadas diante delas.

    Christiane Jatahy também se serviu da montagem cinematográfica nos seus dois espetáculos na MIT. Mas problematiza o dramático incitando os atores a se porem em tensão com seus personagens. Busca que estes se confundam com suas vidas reais e impulsiona seus desempenhos com fugas da ficção.

    O espetáculo da Mostra que melhor enfrenta esse mal-estar do teatro com o drama é "Stifters Dinge", de Heiner Goebbels, em que já não há uma história e no qual, ao mesmo tempo, um infinito de ficções abre-se à imaginação do público. Um aglomerado de tanques de água, pianos preparados e imagens projetadas prende a atenção do espectador, que se torna poeta de "sua" cena.

    Goebbels dispensa os atores, mas precisa de operadores, o que faz lembrar o inglês Gordon Craig (1872-1966). Há cem anos ele vislumbrou a superação do teatro dramático pela "arte do movimento", em que a matéria viva falaria por si, apenas com a colaboração de operadores. Em Goebbels avança-se além da histeria e da melancolia de um teatro morto para fazer emergir uma arte nova, que funde a música, o teatro, a performance e as artes visuais. Eis uma cena expandida.

    LUIZ FERNANDO RAMOS, 58, é professor de história e teoria do teatro do departamento de artes cênicas da ECA-USP.

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