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    Quem se incomoda com a tumba de Saddam quando o EI destrói impérios?

    JONATHAN JONES
    DO "GUARDIAN"

    22/03/2015 04h09

    Sabemos a verdade, agora. Uma civilização inteira pode ser erradicada e o mundo olhará para o outro lado. Ninguém vai se incomodar, excetuados alguns poucos e chatos amantes das artes.

    Faz menos de uma quinzena desde que se tornou claro que o Estado Islâmico (EI) no Iraque e no Levante estava destruindo todos os traços do antigo império assírio nas porções do Iraque que o movimento controla.

    A reação inicial foi de descrença -exacerbada por interpretações irresponsáveis de um vídeo no qual algumas das antiguidades que estavam sendo esmagadas pareciam falsificações -, seguida por horror atônito quanto foi confirmado que o Estado Islâmico demoliu inteiramente a antiga cidade de Nimrud usando rolos compressores.

    E o ciclo de notícias seguiu adiante. A mais recente notícia sobre monumentos iraquianos é a de que o mausoléu de concreto de Saddam Hussein foi destruído nos combates em Tikrit. Oh, não! Isso prova que Karl Marx estava certo ao declarar que a História sempre se repete - primeiro acontece como tragédia e depois se reproduz como farsa. A tumba de Saddam Hussein tinha valor histórico ou artístico absolutamente zero. Por que ela está recebendo cobertura de mídia semelhante à que foi conferida à obliteração deliberada de uma das grandes civilizações do mundo antigo?

    Não vai demorar para que pós-modernistas espertinhos comecem a afirmar que a ausência das esculturas e sítios arquitetônicos assírios destruídos têm uma força que lhe é própria. A arte perdida exerce um fascínio peculiar, afinal. Assim, terminaremos por encontrar argumentos inteligentes para enquadrar a destruição da herança da humanidade. A verdade é que não contamos com uma escala de valores por meio da qual avaliar essa catástrofe. A ideia de uma hierarquia cultural - de que algumas obras de arte são maiores do que as outras e de que algumas formas de arte importam mais do que as outras - é violentamente rejeitada pelo relativismo cultural moderno. A cultura pop é tão importante quanto esculturas antigas (e muito mais divertida!), é a crença da nossa era. Foi isso que Stewart Lee pareceu afirmar no "Observer": que a venda da BBC3 é tão grave quanto a destruição de Nimrud. Ou ele estava sendo irônico e não percebi?

    Se todos os vestidos criados por Alexander McQueen fossem - e Deus nos poupe! - destruídos em um incêndio, isso seria uma história muito mais importante do que a erradicação do império assírio. Como cultura, nós prestamos tributo apenas simbólico aos píncaros das realizações humanas, e muitas vezes nem isso. Existe alguém em algum lugar morrendo de vontade de dizer que a arte antiga dos assírios não o interessa nem um pouco. Quem será o primeiro idiota engraçadinho a declarar coisa assim em público? Afinal, em uma das suas obras de arte mais famosas, Ai Weiwei destrói um antigo vaso chinês - o passado é uma opressão, certo? O que é novo é que é bacana.
    Termos como "memória coletiva" e até mesmo "civilização" são só retórica vazia. Na verdade, como sociedade, esquecemos coisas o tempo todo. Sofremos, coletivamente, de uma severa perda de memória - e quando "recordamos" alguma coisa ela tende a tomar a forma de um emotivo desfile histórico. O que seria preciso, para evitar que os assírios sejam esquecidos, seria alguma forma de instituição que realize por nós o trabalho de recordar.

    Estou em um lugar que faz exatamente isso. A três minutos de distância, a pé, do local em que estou sentado, os assírios sobrevivem. Pois nem toda a arte assíria do planeta foi obliterada. Muitas das obras-primas dessa cultura estão a milhares de quilômetros de distância do Estado Islâmico e de suas barbaridades. Elas ocupam uma série de galerias no British Museum. Touros alados e com cabeças humanas guardam a entrada para a incrível coleção de altos-relevos de Nineveh e outros palácios assírios. Todo um conjunto de altos-relevos viscerais mostram uma caçada de leões na qual leão após leão é liberado de uma jaula apenas para ser abatido por caçadores reais que disparam flechas de seus carros de batalha. Em outras salas, há prisioneiros esfolados em vida, cidades sitiadas, e - em algumas das mais belas cenas - soldados atravessando um rio a nado para atacar o inimigo.

    De fato, contemplando a violência da arte assíria, não consigo deixar de pensar que esses guerreiros do passado teriam derrotado o Estado Islâmico, em um combate igual. Infelizmente, não temos um combate igual. Os homens do passado agora vivem só em sua arte. Qualquer um pode destruir uma obra de arte. Isso não requer coragem. O que requer coragem e fé é defendê-las, e se, como civilização, nos faltar a coragem necessária para proteger a herança da humanidade, pelo menos temos museus que defendem as glórias da arte histórica, ao seu modo paciente e cuidadoso.

    É fácil listar as peças supostamente controversas no acervo do British Museum - e as pessoas em breve o farão uma vez mais quando a instituição voltar a exibir os frisos de mármore do Parthenon em uma grande exposição de arte grega. Mas à luz do que aconteceu no Iraque, precisamos esquecer todos esses debates irrelevantes. Em um mundo caótico e cruel como o nosso, o British Museum e outras grandes coleções em todo o mundo devem ser mantidos e protegidos exatamente como são, o que inclui as esculturas do Parthenon e tudo mais, como cápsulas do tempo para o que a humanidade produziu de melhor. Os museus são a consciência do mundo. Quando o assunto é arte e o legado cultural da humanidade, eles são a única consciência que temos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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