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    Como sobreviver às distrações que devoram o cérebro

    JENNIFER SCHUESSLER
    DO "NEW YORK TIMES", EM RICHMOND, VIRGÍNIA

    03/04/2015 13h00

    Uma recente manhã de domingo era um dia normal de trabalho na Classified Moto, uma oficina de personalização de motos localizada em um antigo estábulo de mulas em Richmond.

    A nova moto (equipada com um suporte para bestas) que a oficina construiu para Daryl Dixon, o feroz caçador de zumbis da série "The Walking Dead", havia acabado de estrear, e um funcionário estava ocupado na bancada produzindo peças sobressalentes. Enquanto isso, no canto, Matthew Crawford, que opera sua empresa independente de produção de peças personalizadas na mesma oficina, estava conversando com esta repórter sobre Kant.

    "Eu sabia que ele estava presente, em algum lugar ao fundo", disse Crawford sobre o filósofo alemão do século 18, um dos pensadores citados em seu novo livro, "The World Beyond Your Head: On Becoming an Individual in an Age of Distraction" (O mundo além da sua cabeça: sobre tornar-se um indivíduo na era da distração; ed. Farrar, Straus and Giroux). Mas foi preciso ler muito e conversar muito com os amigos, ele acrescentou, para descobrir exatamente onde.

    Motocicletas e filosofia são ambas assunto de trabalho para Crawford, 49, um homem franzino mas forte, de fala mansa, que naquele dia vestia um blusão de trabalho azul e óculos retrô. Em 2009, Crawford, formado em filosofia política pela Universidade de Chicago e tornado mecânico mais tarde, publicou um best seller inesperado, "Shop Class as Soulcraft" (Penguim), uma defesa apaixonada do trabalho manual especializado.

    Agora ele decidiu voltar sua atenção ao medo onipresente de que nosso ambiente, com seu excesso de estímulos, esteja alterando nossos relacionamentos e redefinindo –e quem sabe destruindo?– nossos cérebros.

    "The World Beyond Your Head" pode parecer destinado a dividir uma estante com lamentos antitecnológicos como "A Geração Superficial" (Agir), de Nicholas Carr, e "You Are Not a Gadget", de Jaron Larnier. Mas Crawford passa rapidinho pelos smartphones e outros aparelhos e trata do que vê como um problema mais profundo: a noção iluminista de um ser autônomo.

    A ideia de que não necessitamos de uma fonte de autoridade externa a nós, cuja origem ele atribui as Kant, tanto descreve erroneamente o funcionamento real de nossas mentes quanto nos desviou gravemente de nosso caminho, ele argumenta. "Existe o imperativo moral de prestar atenção ao mundo compartilhado, e de não nos deixarmos confinar dentro de nossas cabeças", ele escreve. Apenas por meio de atenção compartilhada ao mundo das coisas reais, argumenta Crawford, nossas mentes "podem se tornar poderosas e atingir independência genuína".

    Crawford, que passou parte da infância em uma comuna no norte da Califórnia, dedica uma formação intelectual incomum à tarefa de "retomar o real", como ele diz. Estudou física na Universidade da Califórnia em Santa Barbara, onde também dedicou muito tempo ao surfe.

    Em Chicago, ele escreveu uma dissertação sobre o eros na filosofia política da Grécia antiga, mas se viu igualmente atraído pelas aulas práticas de um experiente mecânico de motocicletas. Depois de uma bolsa de pesquisa de pós-doutorado que durou um ano e de uma infeliz passagem de cinco meses por um instituto de pesquisa de Washington, ele se mudou para Richmond, onde se estabeleceu como mecânico e como escritor independente.

    "Até agora, escrever se provou mais lucrativo", diz Crawford. De fato, foi o grande interesse despertado por "Shop Class" que estimulou o novo livro.

    De acordo com a Nielsen BookScan, a obra vendeu mais de 150 mil cópias, e resultou em convites para palestras em toda parte, da sede do mercado de artesanato Etsy, em Brooklyn, a uma escola profissionalizante no Qatar.

    "Os convites que eu estava recebendo eram todos interessantes", ele recorda. Mas a experiência "também parecia uma dissolução do meu eu".

    Além disso, diz Crawford em tom brincalhão, ele começou a passar cada vez mais tempo em aeroportos, o que em seu novo livro representa a prova número um da maneira pela qual os interesses comerciais, por meio de TVs ruidosas e publicidade onipresente, vêm tomando o controle do que ele define como "nosso território comum de atenção".

    "Parecia que havia alguma coisa acontecendo sobre a qual não estávamos realmente falando", diz.

    Para tentar compreender o fenômeno, ele pesquisou a fundo sobre fenomenologia, filosofia moral, economia comportamental e ciência cognitiva, o que inclui a crescente literatura sobre a "mente estendida", uma teoria que dispõe que usamos ferramentas e outros objetos a fim de estender nossos processos cognitivos para além das fronteiras de nossos crânios e até de nossos corpos. (A mulher de Crawford –o casal tem duas filhas pequenas– é psicóloga cognitiva.)

    O resultado é um livro que mistura argumentação intricada e exemplos da vida cotidiana, os quais incluem relatos tanto das chatices do dia quanto de atividades que requerem muita atenção, como a produção de peças artesanais em vidro, o hóquei e o trabalho como chapeiro em uma lanchonete.

    "Matt jamais se deixou engolir pelo labirinto", diz Eric Chinski, seu editor na Farrar, Straus. "Nós sempre cuidamos de voltar a algo que todo mundo reconhecesse de maneira visceral - o senso de distração que todos sentimos - e de usar esse fato como um atalho para os percursos mais complicados do livro".

    Uma resenha pré-publicação na revista "Kirkus" definiu o livro como "crítica cultural astuta e acerba", ainda que "ocasionalmente falastrona e estridente". Entre os tópicos tratados estão etiqueta no trânsito, a política das músicas usadas em academias de ginástica e o programa infantil de TV "Clube do Mickey", no qual existe uma máquina que serve a todos os propósitos, chamada Handy Dandy, que Crawford conecta à metafísica da liberdade de Kant.

    "Acho que me disponho mais a cortejar o ridículo do que seria o caso da parte de outros escritores sérios", ele diz.

    "Shop Class" certamente atraiu zombaria. Dwight Garner, resenhando o livro no "New York Times", questionou a visão máscula de mundo que a obra propõe, e seus elogios aos passeios motociclísticos, sugerindo que um título melhor seria "Quién Es Mas Macho?"

    Crawford, que também é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Cultura na Universidade da Virgínia, insiste em que suas ideias também se aplicam, ao chamado "trabalho de mulher", que inclui cuidar dos outros, e a atividades imateriais como a programação de computadores.

    Questionado sobre sua posição política, ele responde que "já fui chamado de marxista e de conservador. Creio que as duas coisas são um tanto verdade". Ele acrescenta que "Marx tinha toda uma antropologia do que é um ser humano, conectada à atividade".

    O capítulo final do novo livro é um relato longo sobre a Taylor and Boody, uma oficina com 16 funcionários que produz órgãos de igreja em Staunton, Virgínia. É uma conclusão forte, que estabelece os principais temas de Crawford e também permite que ele ostente seu lado nerd ao máximo. Há uma história resumida das "guerras dos órgãos" do começo do século 20, e uma avaliação dos "chiffs", a lufada de ar no começo de cada nota que impede que a música de contraponto se torne "frouxa e lamacenta".

    Na Taylor and Boody, Crawford vê a expressão de uma dialética entre a inovação e a reverência pelo passado. "Fiquei espantado ao perceber o quanto a oficina ecoava minha experiência pessoal de estudo de filosofia", ele diz.

    E ela também se assemelha às suas experiências com a construção de motocicletas, pelo menos um pouquinho. Depois do almoço, ele me conduziu em uma visita ao seu Laboratório de Fabricação de Veículos Recuperados, demonstrando como produzir um protetor lateral triangular para motos parecido com os mostrados em seu site, usando técnicas que ele aprendeu com um artesão metalúrgico sueco perto de San Francisco (e em vídeos do YouTube), e ferramentas que ele fabricou ou modificou pessoalmente.

    Ao final do processo, o protetor será instalado para teste em uma Honda CB750 semidesmontada que pende de correntes no centro da oficina - o equivalente motociclístico de um manequim de costureiro. A carenagem de fibra de vidro da moto, temporariamente removida, é trabalho do britânico Paul Dunstall, que produz motos personalizadas e cujos modelos dos anos 60 e 70 são muito procurados por colecionadores e motociclistas. "Agora me tornei a pessoa horrível que adulterou o trabalho dele", diz Crawford.

    Há algo de libertador, ele diz, sobre um conceito de criatividade que não requer começar do zero.

    "Os padrões em que estou interessados são funcionais e não antiquários", ele diz. "Quero que essa moto rode muito bem. E estou disposto a arrancar partes dela para garantir que isso aconteça".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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