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    O outro lado da Mancha

    ALESSANDRA MAMMÌ

    05/04/2015 03h00

    RESUMO Pressionada pela pelos valores exorbitantes do mercado imobiliário e artístico, Londres perde seu posto como capital cultural, com fuga de artistas e de estudantes para outros destinos. Paris, onde a injeção de dinheiro público atrai investimentos privados, recupera seu posto de farol da arte contemporânea.

    *

    Algo mudou. A Cidade Luz despertou. Reacendeu seus museus, convocou o mundo da arte para as margens do Sena, tirou o pó de sua lendária "grandeur" e chamou para si novamente o papel de centro artístico da Europa que, há um século exatamente, detinha.

    Vamos todos a Paris, depois de anos em que todos os caminhos levavam a Londres. A Londres dos Young British Artists, como Damien Hirst e Tracey Emin; da explosão do mercado que multiplica zeros; dos recordes de leilões reunindo os colecionadores mundiais; das galerias que se mudam, a cada seis meses, para espaços mais e mais gigantescos.

    François Guillot/AFP
    Oba de Daniel Buren ocupa o Grand Palais durante a Monumenta, em 2012
    Oba de Daniel Buren ocupa o Grand Palais durante a Monumenta, em 2012

    Aquela Londres que havia arrancado de Nova York seu cetro, tornando-se a meca dos artistas e o sonho dos galeristas. A Londres que gerou a Frieze Art Fair, nascida de uma revistinha e engordada sob uma tenda no meio de um parque, até chegar a ter ramificações em Basileia. E, no entanto, essa Londres, capital do que há de mais contemporâneo na arte, se asfixia no excesso de riqueza.

    Em novembro do ano passado, o britânico Grayson Perry, artista excêntrico, mas celebrado, confrontou publicamente o prefeito de Londres, Boris Johnson: "Sr. prefeito", disse, "O senhor se dá conta de que Londres está se transformando num deserto? Que nenhum jovem artista pode hoje se permitir viver aqui? Que o senhor deve investir dinheiro público, intervir no valor da moradia e dos estudos, ou de outra forma também os jovens ingleses terão de emigrar? Se deu conta de que todos esses ricos juntos não produzem nem um só grãozinho de cultura?".

    O "j'accuse" repercutiu nos principais jornais britânicos. Ocasionou debates e apelos contra a Tech City, contra as sete torres de lofts para super-ricos em construção, contra a gentrificação operada por bilionários.

    Mas, sobretudo, causou estupor o fato de que a bandeira tivesse sido levantada por um artista/performer conhecido por ostentar um alter ego feminino (Claire) que adorna o cabelo com laços de fita, usa saias bufantes e salto alto, tudo escolhido em tons pastel. Uma criatura bizarra que, assim trajada, chegou a abiscoitar o Prêmio Turner e cruzou os portões do Palácio de Buckingham sob o consentimento da rainha.

    Foi ele/ela o primeiro a dizer que o rei estava nu, ainda que os sinais havia tempos já estivessem presentes e que a edição mais recente da Frieze, em outubro, já houvesse alertado a ultrapassagem de Paris sobre Londres. Pela primeira vez, o número de visitantes da feira no Regent's Park havia sido superado pelo de sua prima do outro lado da Mancha, a Fiac do Grand Palais, inaugurada menos de uma semana depois: foram 74 mil ingressos franceses contra 69 mil ingleses.

    Paris brinda por sua primeira vitória na guerra da arte –uma vitória merecida.

    Pôs em campo suas melhores armas: o esplendor da nave de ferro e vidro, com 35 metros de altura, a recobrir os 13 mil metros quadrados do Grand Palais; a presença de ministros, prefeitos e até do presidente Hollande, fotografado entre os estandes sob a iluminação zenital daquela obra-prima da arquitetura eclética; a inauguração, em paralelo, da Fundação Vuitton no Bois de Boulogne, assinada por Frank O. Gehry, além do contraponto de uma mostra sobre o arquiteto no Centro Pompidou; a reabertura do Museu Picasso, oferecendo o gênio do século 20 como resposta aos leilões milionários da Sotheby's e da Christie's na semana de artes londrina. E (fato recentíssimo) até um incentivo fiscal para transações de compra e venda de objetos e obras de arte.

    "A arte inglesa soube promover, muito melhor que nós, os seus artistas. Valeu-se de um poderoso sistema de comunicação. Demonstrou-se um verdadeiro gênio da fofoca. Isso é tudo. Mas a cultura contemporânea tem seu lar aqui."

    Quem diz é Jean-Hubert Martin, um homem tão sorridente e gentil que faz até esse raciocínio de tom arrogante parecer charmoso.

    Foi ele o artífice de "Les Magiciens de la Terre" (Os magos da Terra), mostra pioneira em transpor o etnocentrismo da cultura visual, reunindo artistas ocidentais e não ocidentais, em 1989, mudando assim a geografia da arte e servindo de prenúncio a uma nova época. E é ele, hoje, o curador da Monumenta: a gigantesca instalação que, a cada dois anos, desafia artistas contemporâneos a confrontar-se com a imponência do Grand Palais.

    Ali foram dar Richard Serra, que apostou na força; Anish Kapoor, no maravilhamento; Daniel Buren, na cor; Christian Boltanski, na dor; e o casal Kabakov, na utopia.

    Perguntemos: "Senhor Martin, de onde vem a ideia da Monumenta? Ela é importada das poderosas mostras de artistas no Turbine Hall da Tate Modern?".

    "Quando muito, podemos falar no oposto", responde. "Fomos nós, em Paris, os primeiros a provocar o embate entre artistas e espaços exagerados. Desde os canteiros do Marais, desde o fosso de Les Halles, onde Marco Ferreri fez um filme cult: 'Não Toque na Mulher Branca' [1974]."

    DINHEIRO PÚBLICO
    A concorrência reforça o orgulho –e expõe as diferenças. A força cultural de Paris reside no dinheiro público e na crença nas instituições nacionais. O presidente do Grand Palais, Jean-Paul Cluzel, enche o peito para esmiuçar cifras, contando como, apesar da crise, nasceu, no edifício que triunfa sobre o Champs-Elysées, a Rmn-GP, acrônimo que designa Rèunion des Musèes Nationaux - Grand Palais, instituição sob a tutela do Ministério da Cultura.

    "Assinamos mais de 40 eventos, entre Paris, o resto da França e cooperações internacionais. Publicamos ao menos 60 volumes por ano. Somos a principal editora francesa e estamos entre as primeiras da Europa. Contamos 12 milhões de contatos anuais em nosso site, adquirimos centenas de obras para nossas coleções."

    A crise, diz ele, causou "um pesado corte de 14% no orçamento, que recaiu principalmente sobre as mostras". "Mas que foi contrabalançado pelo número crescente de visitantes, de catálogos vendidos e de dinheiro privado, que não faltou", completa.

    Vale a velha lei: é a coisa pública que consolida e legitima o privado, não o contrário. E Paris se ancora em seu papel institucional. Tanto que galerias e marchands importantes e bem colocados na lista "Power 100" da "Art Review" –bíblia do poderio artístico, que não por acaso lançou um número não na Frieze, mas na Fiac– vêm preferindo Paris a Londres.

    É o caso, por exemplo, do austríaco Thaddaeus Ropac, que investiu em um centro de arte com restaurante e café no subúrbio parisiense de Pantin, ou da Galeria Continua, de San Gimignano, com sedes em Pequim e em Les Moulins, na região da Île-de-France, onde ergueu todo um pequeno povoado, composto de residências artísticas e mostras espetaculares.

    Mario Cristiani, um dos três fundadores da Continua, dá sua explicação para a ultrapassagem.

    "No meu caso, pode ser porque venho de uma cidade de arte na Toscana, mas, se estamos aqui, é porque acreditamos que o hiperliberalismo não é bom nem mesmo para nós, negociantes. Londres, apesar do poder financeiro, das galerias que cada vez mais parecem multinacionais e dos artistas que ganham mais que jogadores de futebol, alimentou um mecanismo autofágico. Aqui, a forte presença do interesse e do dinheiro público no sistema artístico faz mais sólido e verdadeiro até o mercado."

    Enquanto, cruzando o canal, multiplicam-se mostras-monstro em espaços privados que mais do que galerias parecem "show rooms", e as cifras dos leilões riscam os céus como fogos de artifício, propelidas pelos nomes de sempre, o insustentável custo de vida londrino impele a fuga de artistas para outras metas –Paris, Bruxelas, Berlim– e de estudantes (não só europeus mas também ingleses) para escolas no norte da Inglaterra e, sobretudo, na Escócia.

    Entre os quatro finalistas do último Turner –mais importante reconhecimento artístico do mundo–, três vinham da academia de Glasgow, inclusive o vencedor, Duncan Campbell, irlandês de nascimento e escocês por adoção. Campbell assina um filme de arte e política que (coisas da vida) homenageia o Alain Resnais de "As Estátuas Também Morrem", curta documentário que o cineasta francês (1922-2014) realizou em 1953.

    Entre a fuga de talentos e o efeito do referendo independentista que por muito pouco a Coroa Britânica não perdeu, a Tate Gallery já anunciou que, em 2015, o prêmio terá sede em terras escocesas.

    É o caso, portanto, de refletir sobre o que acontece com Londres, reduzida a shopping center de luxo planetário, picadeiro para o circo de recursos árabes, russos e asiáticos e cenário de especulação imobiliária que esvazia a cidade.

    Será preciso entender como, em tão pouco tempo, a capital inglesa caiu ao terceiro lugar no Qs Top University Ranking das melhores cidades universitárias do mundo, subjugada por Paris, a campeã, e pela australiana Melbourne, que lhe arrancou o segundo lugar.

    E, evitando os excessos dos raciocínios macroeconômicos ou as velhas nostalgias marxistas, talvez sejam simplesmente verdadeiras as palavras do marchand toscano: "o hiperliberalismo não faz bem nem ao mercado".

    Ao menos, não ao da arte. E menos ainda à arte como um todo.

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