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    Livros analisam contradições internas da Coreia do Norte

    SIMON MUNDY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    07/04/2015 17h27

    Artifícios e dissimulação são requisitos diários para escapar da ditadura hereditária norte-coreana -ou apenas para sobreviver a ela.

    As pessoas que visitam Pyongyang, capital do país, frequentemente ficam perplexas com as incoerências gritantes da cidade. Monumentos majestosos se elevam sobre propaganda ostentosa proclamando a genialidade dos líderes eternos da Coreia do Norte, num contraste incômodo com a pobreza humilde dos cidadãos que circulam pelas ruas em silêncio. Os preços polpudos nas lojas de departamentos traem os mecanismos capitalistas que distorcem o modelo ostensivamente comunista. Agentes governamentais sorridentes estão sempre por perto, prontos para louvar as qualidades de seu país -ao mesmo tempo em que vigiam, atentos, para assegurar que os visitantes não tenham nenhuma chance de explorar o país por conta própria.

    O turista perplexo que quiser entender as origens desse Estado tão incomum poderia começar pela leitura de "The Great Leader and the Fighter Pilot" [Viking, R$ 87, 304 págs.], de Blaine Harden, uma visão original dos primeiros anos da Coreia do Norte. A história central é a de No Kum Sok, ex-tenente da Força Aérea do país, que em 1953 protagonizou uma das deserções mais espetaculares da Guerra Fria quando pousou seu jato MiG no aeroporto Gimpo, de Seul (Coreia do Sul), rendendo-se aos funcionários americanos estarrecidos, erguendo os braços e gritando as únicas palavras em inglês das quais se lembrava da escola: "Motor car! Motor car!" (automóvel, automóvel!).

    Como no caso da história do ex-prisioneiro político Shin Dong-hyuk, que Harden relatou em "Escape from Camp" (2012), o novo livro do jornalista americano pode ser lido como um thriller. Mas o mais interessante talvez seja a descrição que ele faz da dança sutil de No com as autoridades ideológicas norte-coreanas, quando ele se fez passar por fanático socialista exemplar para conseguir sobreviver e eventualmente escapar.

    Sua lavagem cerebral começou não com os comunistas, mas com o governo colonial japonês, que governou a Coreia até 1945 e ensinava a crianças como No que o imperador Hirohito (1901-1989) era um deus vivo. Como já sugeriu o estudioso Brian Myers, essa doutrina pode ter ajudado a abrir caminho para o virtual endeusamento dos líderes norte-coreanos.

    Mas a propaganda produzida pelo governo norte-coreano recém-formado foi demais para No aceitar -"ele simplesmente não acreditava que a América fosse pobre"–, e ele então se propôs a viver uma mentira do modo mais convincente possível.

    Chama a atenção do leitor o fato de seu fingimento ter sido tão prontamente aceito. Na Força Aérea, ele se oferecia voluntariamente para fazer leituras de discursos de Kim Il-Sung (1912-1994), o primeiro líder da Coreia do Norte, e atacava outros pilotos por sua falta de devoção, ao mesmo tempo em que temia que sua atuação exagerada fosse vista como suspeita. Seu temor era infundado. Só nos resta especular se seus superiores teriam estado ocupados demais representando sua própria farsa.

    No caso de No, o final foi feliz: ele ludibriou a polícia secreta da Coreia do Norte, fugiu para a América, comprou ações na Coca-Cola e contou sua história a Harden. Mas é difícil descartar um argumento incômodo que é apresentado repetidas vezes em "The Great Leader and the Fighter Pilot": que os Estados Unidos ajudaram a lançar as sementes do nacionalismo norte-coreano extremo com a campanha maciça de bombardeios que travaram na Guerra da Coreia, algo que o regime norte-coreano usou para persuadir a população da necessidade de um governo forte que pudesse protegê-la contra um mundo externo hostil.

    "Foi uma dádiva de propaganda para a família Kim, algo que continua a render até hoje", escreve Harden, enquanto cita sarcasticamente uma série de relatos oficiais americanos que minimizaram grotescamente o número enorme de civis norte-coreanos mortos nos bombardeios. Isso faz parte de uma segunda narrativa de seu livro que é entremeada à história de No: uma explicação do surgimento de Kim Il-Sung e de sua consolidação do poder.

    As duas narrativas convivem desajeitadamente, mas o tratamento dado por Harden aos primeiros anos de Kim no poder é estimulante -em especial seu uso de trabalhos recentes baseados em documentos dos arquivos chineses e soviéticos. Assim como o povo de Kim o louvava para se proteger, Harden mostra, Kim buscava engraçar-se com Stálin, na esperança de reforçar sua própria posição.

    Mas o tratamento que Stálin deu a Kim durante a guerra coreana foi insultuoso em seu descaso. Em outubro de 1950 ele mandou Kim fazer as malas e partir para a Manchúria para escapar do avanço das forças americanas, avisando que nem tropas soviéticas, nem chinesas viriam em sua assistência. Um dia depois, Kim foi instruído a ficar parado: as tropas chinesas estavam entrando na luta, afinal. Humilhado no palco mundial por seus aliados, Kim afirmou sua autoridade ainda mais agressivamente em casa.

    O RAPTO DO CASAL DOURADO

    Seus abusos do poder foram elevados a um novo nível por seu filho, Kim Jong-Il, que no final dos anos 1970 ordenou o sequestro do "casal dourado" do cinema sul-coreano, o diretor Shin Sang-ok e sua mulher, a atriz Choi Eun-hee, para que dessem o pontapé inicial na indústria cinematográfica da Coreia do Norte. Essa história é relatada de modo evocativo em outro lançamento: "A Kim Jong-Il Production: The Extraordinary True Story of a Kidnapped Filmmaker, His Star Actress, and a Young Dictator's Rise to Power" [Flatiron Books, cerca de R$ 88, 366 págs.] o primeiro livro do produtor de cinema Paul Fischer, de Londres.

    O drama desse caso extraordinário garante uma leitura fascinante, mas o maior mérito do livro talvez esteja no insight incomum que nos oferece sobre a personalidade de Kim Jong-Il. Shin e Choi, que afirmam ter tido amplo acesso a ele, oferecem um festival de anedotas sobre esse líder quase infantil, cuja personalidade foi deturpada pelo fato de ter cada capricho seu satisfeito desde que nasceu. Fischer escreve que nas notórias festas de Kim regadas a álcool um assessor ficava a seu lado o tempo todo, pronto para anotar e divulgar qualquer coisa "que soasse mesmo remotamente como uma ordem", mesmo que o líder a tivesse dito "às 3h da manhã, completamente bêbado".

    Quando Shin e Choi contaram essas histórias -em seu livro de memórias, publicado em 1988 e nunca traduzido ao inglês-, alguns sul-coreanos, que os acusavam de terem tentado acobertar uma deserção política proposital para o Norte, as acharam boas demais para ser verídicas. Fischer usou esse livro como sua fonte principal e conclui seu próprio livro discutindo a confiabilidade do relato do casal. Observa que suas gravações de falas de Kim Jong-Il feitas sigilosamente foram consideradas autênticas pela inteligência americana e diz que, na medida do possível, verificou independentemente a veracidade do que eles disseram.

    Mas essa corroboração de fatos pode ser dificílima quando se escreve sobre a Coreia do Norte. Harden é testemunha disso, tendo tido que revisar "Camp 14" depois de Shin ter corrigido alguns detalhes chaves de sua história -fato que Pyongyang não deixou de destacar. Em seus novos livros, nem Harden nem Fischer oferecem notas de rodapé ou notas finais para tranquilizar o leitor cético.

    Para crédito de Fischer, ele evita tratar o sequestro do casal como ideia arquitetada por um louco. Em vez disso, se aprofunda nas razões pelas quais Kim dava tanta importância à indústria cinematográfica norte-coreana, que foi um elemento central dos esforços de propaganda política do Estado antes de quase desaparecer a partir da década de 1990.

    "Os filmes eram baratos e fáceis de controlar", ele escreve; "exatamente a mesma fita de exatamente o mesmo filme era exibida em todo lugar". Era uma experiência coletiva que tinha boa probabilidade de agradar à população, embora o comparecimento para assistir aos filmes fosse obrigatório.

    Fischer vai longe demais quando afirma que o presidente do departamento de cinema, Choe Ik Gyu, teve uma participação tão importante quanto Kim Jong-Il na criação "do Estado norte-coreano moderno, ele próprio uma produção, uma performance para ser apresentada".

    Mas ele tem razão em focalizar os artifícios e a dissimulação tão vitais na Coreia do Norte de Kim Jong-Il -algo do qual Shin e Choi tinham tanta consciência. Como No, Shin temia que suas declarações de lealdade fossem extravagantes demais para ser levadas a sério, mas elas lhe valeram a confiança de Kim e a oportunidade de viajar a Viena, de onde ele e Choi puderam fugir.

    Mas parece que mesmo Kim às vezes se sentia incomodado com a farsa de lealdade. "Não acredite em nada disso", ele disse a Shin depois de uma declaração costumeira de devoção dada pelos presentes em uma de suas festas. "É tudo faz de conta, tudo falsidade."

    CARESTIA DEVASTADORA

    A farsa diária da vida na Coreia do Norte assumiu um novo ar desde a década de 1990, quando o Estado parou, na prática, de alimentar a maioria da população, na medida em que cortes drásticos na ajuda recebida de Moscou agravaram os efeitos de décadas de má gestão econômica. Seguiu-se uma carestia devastadora e generalizada, obrigando as pessoas a se voltarem aos emergentes mercados informais para conseguirem sobreviver.

    As enormes implicações dessa mudança são tratadas pelos jornalistas britânicos Daniel Tudor e James Pearson em "North Korea Confidential: Private Markets, Fashion Trends, Prison Camps, Dissenters and Defectors" [Tuttle, cerca de R$ 69, 224 págs.], que usa extensas entrevistas com desertores recentes e pessoas que ainda estão no país para montar um quadro detalhado do cotidiano norte-coreano. Com o comércio privado ainda sendo oficialmente proibido na maioria dos casos, o capitalismo na Coreia do Norte, eles escrevem, é como o sexo na Inglaterra vitoriana: "Todo o mundo o pratica, mas poucos admitem sua existência publicamente".

    No entanto, suas manifestações estão cada vez mais visíveis, e os autores o demonstram em suas descrições do setor da moda na Coreia do Norte, com imitadores locais produzindo cópias de roupas usadas por astros da televisão sul-coreana cujos trabalhos são consumidos com avidez em DVDs e flash drives contrabandeados.

    Mesmo as cirurgias de pálpebra, moda em Seul, chegaram à Coreia do Norte, onde frequentemente são realizadas por amadores por tão pouco quanto US$2.

    Também é elogiável o estudo que os autores fazem do mercado imobiliário de Pyongyang: embora a propriedade privada de imóveis seja proibida, compradores e vendedores podem "trocar" suas moradias designadas, em transações semilegítimas, enquanto fazem os pagamentos -e pagam as propinas devidas a autoridades-por baixo do pano.

    Lemos que os preços em Pyongyang podem passar de US$100 mil, sendo os apartamentos mais caros geralmente os de andares inferiores, devido aos frequentes cortes de eletricidade que tiram os elevadores de ação.

    Tudor e Pearson fazem bem em não interpretar essas mudanças como sinais do colapso iminente do regime de Pyongyang, algo que vem sendo previsto pelo menos desde a queda da União Soviética. O regime, eles escrevem, quer utilizar as mudanças na economia para suas finalidades próprias, com o capitalismo público-privado permitindo que "a liderança construa laços de clientelismo e lealdade numa era em que a ideologia deixou de ter importância".

    E, enquanto a economia evolui, todos os indicativos sugerem que o lado mais repreensível da Coreia do Norte, o tratamento que o país dá aos supostos dissidentes, está tão mau quanto sempre. Os autores nos oferecem alguns insights úteis sobre os métodos empregados pela polícia secreta, incluindo o raciocínio assustador por trás de sua prática de convocar suspeitos para uma reunião, em vez de prendê-los. "Se a pessoa comete suicídio antes da hora marcada, isso poupa às autoridades o trabalho e o custo financeiro de terem que dar cabo dela."

    A pressão internacional sobre a Coreia do Norte vem se intensificando desde que, no ano passado, uma comissão da ONU publicou um relatório detalhando uma litania chocante de violações dos direitos humanos. Mas a sugestão feita no livro de que a liderança de Pyongyang seja levada a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional tem poucas chances de virar realidade no futuro próximo, e Tudor e Pearson tratam com ceticismo a perspectiva de o bando crescente de comerciantes norte-coreanos tentarem derrubar o regime Kim, agora em sua terceira geração, com Kim Jong-un.

    "A nova classe capitalista ascendente geralmente procura unir-se à elite existente, e não enfraquecê-la", eles escrevem. Por mais insustentáveis possam parecer, as extraordinárias contradições internas da Coreia do Norte podem persistir por algum tempo ainda.

    SIMON MUNDY é correspondente do "Financial Times" em Seul.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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