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    Jornalista narra o prazer e a dor de ser jurada de um prêmio literário

    RACHEL COOKE
    DO "GUARDIAN"

    08/04/2015 13h08

    Eu jamais quereria me queixar de ter tido que ler tanto como jurada do Prêmio Folio. Como é maravilhoso ser paga para ler -supondo, é claro, que a leitura é o que interessa a você (no meu caso, praticamente não quero fazer outra coisa).

    Mas não há como negar que em algumas semanas eu me sentia avessa às caixas de livros que me olhavam implacavelmente do canto de minha sala. Se você devorar muita ficção em muito pouco tempo -e nós lemos 80 romances e coletâneas de contos em mais ou menos quatro meses-, não demorará a sofrer o equivalente literário a uma intolerância alimentar.

    Oh, não, você pensa. Não mais um romance sobre X ou Y! Nesses momentos, a única coisa que faz você continuar firme é a esperança tênue de que o livro em questão possa revelar ser o maior romance já escrito sobre X ou Y.

    Essa é a primeira etapa do processo, e quando ela termina, é bom. A segunda etapa acontece sem que você se dê conta. À medida que as semanas vão passando, forma-se em sua cabeça uma lista de livros à qual você se apega de maneira irracional. Então você terá chegado ao início da etapa três: o grande processo de abrir mão.

    Pode soar como idiotice agora, mas concordei em ser jurada do Prêmio Folio imaginando que seria simples. Nós, jurados, apenas teríamos que identificar o melhor livro; nosso único critério seria a excelência. Não sei como, deixei de registrar que eu não ficaria sentada numa sala com quatro outras Rachels, todas dotadas das mesmas simpatias e antipatias que eu.

    Na primeira reunião dos jurados nas quais traçamos nossa lista preliminar de finalistas, senti algo que se aproximou do pânico quando meus livros queridos foram descartados, eliminados pelo repúdio ativo ou, ainda pior, pela indiferença de meus colegas William Fiennes, Mohsin Hamid, AM Homes e Deborah Levy.

    Depois da reunião que resultou na lista definitiva de finalistas, tive que voltar para casa à pé pelo caminho mais longo, para gastar a adrenalina. Nem mesmo o fato de saber que todos os outros jurados estavam sentindo a mesma coisa -todos nós sofremos baixas- tornou o processo menos doloroso.

    A quarta etapa -escolher um nome de uma lista de oito finalistas- é a prior de todas. Uma "omertà" estranha cerca os prêmios literários; ninguém jamais ousa sugerir em público que um júri ficou dividido. Por quê? Simplesmente não é possível que o vencedor sempre seja aquele que cada um dos jurados queria ver vencer.

    E isso não é ruim; eu interpretei a agonia prolongada de nossa reunião final -ela durou três horas- como sinal da grandeza, da essencial correção de nossa lista de finalistas. De qualquer maneira, foi uma tortura que veio apenas intensificar a doçura na noite de 23/3, quando Akhil Sharma subiu ao palco para receber seu prêmio.

    Nessa hora, as dúvidas desaparecem. Vendo-o -ele piscou com expressão de quem não podia acreditar, como se até naquele momento ele pudesse pôr tudo a perder-, eu me senti exausta. Como é brilhante "Family Life", romance divertido, selvagem e magistralmente controlado sobre um menino indiano cujo irmão sofre um acidente terrível pouco após a chegada de sua família na América, como é bom que o livro agora encontrará tantos novos leitores. É um livro que eles terão facilidade em gostar, talvez até mesmo amar.

    Quinta etapa. A poeira assenta. Sem aquelas pilhas de livros, os dias me parecem mais folgados, mais expansivos. Mas não consigo deixar de repassar tudo em minha cabeça. Eu ainda queria que os organizadores do Prêmio Folio não tivessem decidido divulgar os 80 títulos que lemos (livros que foram indicados pelos membros da Academia Folio, todos os quais são escritores).

    O objetivo dos prêmios deveria ser dar apoio aos autores, não dificultar sua vida. Como é deprimente ver que nosso nome não consta de uma lista tão longa -e que não tem utilidade alguma para o público leitor, por ser tão comprida. Espero que os organizadores reflitam mais sobre isso e que os membros da academia que concordam comigo se manifestem.

    Me preocupo com o que podemos estar perdendo. O romance britânico de história social parece fadado ao fracasso, a julgar por nossa cultura de premiações: é impossível imaginar um escritor como David Lodge tendo a mesma carreira hoje.

    Os personagens também estão em baixa: os escritores do século 21 preferem construir suas histórias em torno de temas (talvez essa uma razão pela qual eu me rendi tanto ao assombroso "Nora Webster", de Colm Tóibin, entre outros livros).

    Meu palpite é que, no futuro, escritores americanos bem apoiados irão se sair muito bem nos Prêmios Folio e Booker -por uma série de razões diversas e complexas- e que isso terá consequências para a literatura e o mundo editorial deste país.

    Pode também, no final, afetar a maneira como nós, leitores britânicos, falamos com nós mesmos e pensamos sobre nós mesmos. É importantíssimo olhar para o mundo, mas às vezes também precisamos olhar para dentro.

    Em contrapartida, porém, precisa ser levado em conta que os escritores realmente estão cultivando novas formas nos laboratórios de suas mentes. Há ousadia ali fora, se você a procurar. Ninguém poderia ler nossa lista de finalistas e não sentir-se instigado. Prezo o fato de nos últimos meses ter lido tantas coisas verdadeiramente espantosas (que talvez jamais tivesse lido de outro modo).

    Às vezes, quando caminho até o ponto de ônibus, penso em "The Book of Strange New Things", de Michel Faber, em que um pastor cristão viaja até um planeta distante para converter seus habitantes alienígenas, cuja língua ele não fala e cujos rostos não consegue interpretar. Mesmo agora, nunca sei se devo sorrir ou franzir o cenho.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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