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    Arquivo Aberto - O velho, o mar e a memória

    VLADIMIR CARVALHO

    12/04/2015 03h33

    João Pessoa, 1979

    Ao entender-me de gente, logo aprendi a admirar José Américo de Almeida, como figura incontornável da mitologia nordestina -como todo paraibano que se preze.

    Em 1967 fui entrevistá-lo para o jornal em que trabalhava, substituindo o seu repórter principal. Não tinha experiência do batente e ao final, quando pensava em dar por terminada a tarefa, José Américo surpreendeu-me com uma inesperada exigência: que eu lesse para ele a algaravia que lançara no bloco de notas.

    Tremi nas bases e a custo consegui, nervosíssimo, "traduzir" o manuscrito. Ele então rubricou folha a folha, passando-as de volta para mim. Era sua tácita e cautelosa concordância com o que escrevera. Era seu jeito e seu estilo de ser, e aquilo ficou-me para sempre na memória.

    Arquivo Pessoal
    José Américo de Almeida, Walter Carvalho e Vladimir Carvalho, em praia de João Pessoa, em 1979
    José Américo de Almeida, Walter Carvalho e Vladimir Carvalho, em praia de João Pessoa, em 1979

    Doze anos depois voltei ao seu retiro, ele já um solitário nonagenário ao pé do mar, para tomar-lhe extenso depoimento destinado ao meu longa-metragem "O Homem de Areia", que pretendeu ser o seu perfil no cinema. Interditado o trânsito em frente ao seu casarão no Cabo Branco, guiei-o até a beira da praia para uma caminhada que arquitetara desde o roteiro. Ali, no plano meio inclinado, onde as ondas morrem no areal.

    Mesmo discreto, o desnível do terreno onde pisava dificultava os seus passos e acentuava o seu coxear, puxando pela perna esquerda, exigindo-lhe certo esforço.

    Era a marca indelével que trazia no corpo desde o desastre aéreo de 1930, quando assumiu o Ministério de Viação e Obras, no primeiro governo Vargas. Míope e sem saber nadar, quando o avião

    Savoia-Marchetti se precipitou nas águas do mar da Bahia, o nosso herói foi milagrosamente salvo, fato que atribuía à intervenção de uma força superior, mais do que aos tripulantes de um saveiro que por ali passava, içando-o dos destroços em que se mantinha agarrado.

    Na véspera das filmagens não consegui conciliar o sono de tão ansioso que estava, pensando em como iria enfrentar uma das mais temidas lendas da política brasileira. Eu havia visto, fazia pouco, uma entrevista que ele concedera a Otto Lara Resende, na televisão, e constatara o respeito reverencial com que o velho profissional de imprensa tratara o autor de "A Bagaceira", o que só fizera aumentar o meu nervosismo.

    Para me deixar mais preocupado, José Américo me pedira para assistir ao meu filme "O País de São Saruê" que por aqueles dias havia sido liberado e ganhava as páginas dos jornais, depois de uma quarentena de mais de oito anos preso na censura.

    A essa altura eu ficara sabendo da visita que agentes do Dops haviam feito a Roberto Faria, então dirigente da Embrafilme. Os famigerados queriam obter o roteiro de "O Homem de Areia" e saber sobre o seu financiamento por aquele órgão de governo.

    Consta que era uma injunção do general Reinaldo de Almeida, filho de José Américo, cogitado para assumir a Presidência da República.

    No fundo, penso que, se assim foi, o seu gesto expressava tão somente um compreensível zelo filial, temendo que o velho que concordara em ser filmado entrasse numa fria. Mas Roberto saiu-se muito bem. Disse aos "emissários" que dali só sairiam documentos com tal conteúdo mediante autorização do Ministro da Educação e Cultura, a quem era subordinado.

    De manhã fiz da fraqueza força e acudiu-me pensar em El Cid, o grande cavalheiro: "Treme perna, mas eu te levo lá". E fui!

    Tranquei a rua, orientei a equipe e passeei o ministro pelas areias do Cabo Branco, sem sofrer interrupção de monta. E, no outro dia, fomos muito cedo tocaiar a chegada de Jorge Amado, Zélia e o artista plástico Calazans Neto, que tinham vindo para uma visita exclusiva a José Américo. Filmamos o importante encontro e entrevistamos o romancista baiano desmanchando-se em elogios ao mestre.

    Depois que a caravana partiu, foi a vez de José Américo falar em longo depoimento que percorre todo o filme. E aí foi dura a lida! Foi como esculpir em rocha impenetrável; ele não era presa fácil, mas prevenido e astuto.

    De fato, tinha muito o que narrar o ex-revolucionário de 1930, o ex-governador e fundador da Universidade da Paraíba (e seu primeiro reitor), o ex-senador e membro da Academia Brasileira de Letras, e assim o fez, porque, como ele mesmo disse: "Ninguém se perde na volta".

    Entretanto as ideias e os argumentos que fervilhavam por trás da ampla calva do cabeção nordestino passavam, frise-se, por uma espécie de imaginária trava exercida, ao que parecia, na região de sua mandíbula sempre tensa. Ele como que ruminava entre dentes cada palavra, no curso de breves silêncios, antes de pronunciá-las com sua prosódia tão característica, eliminando os "ls" (eles) finais, vítimas da chamada apócope.

    Preliava naturalmente com a memória que não era mais a mesma, num último e desafiador "tour de force", no crepúsculo do próprio mito, aos 92 anos. Dessa jornada de mais de quatro horas de falas e ruminações guardo como fetiche, ou relíquia, um diminuto rolo magnético de som, com uma de suas inquietantes pausas que duram a eternidade de quase um minuto.

    Assim era José Américo de Almeida, no ocaso da vida, tão rico no trato com as palavras, mas ainda trancado e cauteloso como raposa política do seu tempo.

    VLADIMIR CARVALHO, 80, é cineasta. Um dos homenageados do festival É Tudo Verdade, lança o livro "Jornal de Cinema" (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo) na quarta (15), na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073), às 19h.

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