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    Nova York tão desigual: autores exploram as assimetrias da cidade

    FRANCISCO QUINTEIRO PIRES

    26/04/2015 03h00

    RESUMO A crescente desigualdade entre ricos e pobres em Nova York tem servido de tema para novas obras, como a coletânea literária "Contos de Duas Cidades". Organizado por John Freeman, o livro chega ao Brasil no segundo semestre. O contraste entre bilionários e pobres também aparece em best-seller e filme.

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    Quando era editor da revista "Granta" em 2010, John Freeman raramente acordava após as seis da manhã. Enquanto tomava o primeiro café do dia, observava o estacionamento em frente a seu prédio à espera de que Tim, seu irmão mais novo, passasse e acenasse.

    Pobre e vítima de transtornos psiquiátricos, Tim Freeman dormia a cerca de um quilômetro de distância do amplo apartamento do irmão no Chelsea, em um abrigo da prefeitura para moradores de rua. Influenciado pela experiência fraterna, Freeman começou a refletir sobre a desigualdade em Nova York, que se encontra em patamar equivalente ao de antes da Grande Depressão de 1929.

    A fim de entender o impacto do fosso crescente entre ricos e pobres, o jornalista e escritor convidou 30 autores para relatar o que testemunharam como habitantes de Nova York. Freeman reuniu os textos em "Tales of Two Cities" [OR Books, 272 págs., de US$ 10 a US$ 20 na Amazon.com], o primeiro livro a usar experiências pessoais para tratar do problema.

    Dave Eggers, Edmund White, Jonathan Safran Foer, Junot Díaz, Lydia Davis, Teju Cole e Zadie Smith são alguns dos escritores consagrados da antologia, que a editora Bertrand Brasil vai publicar no segundo semestre deste ano. O volume também será lançado na China, na Espanha e na França.

    O título do livro inspirou-se tanto no lema da campanha eleitoral do atual prefeito de Nova York, Bill de Blasio, quanto num romance de Charles Dickens (1812-1870), "Um Conto de Duas Cidades".

    No discurso de posse, em 1º de janeiro de 2014, de Blasio afirmou ser a desigualdade "o problema central do nosso tempo", capaz de "destruir a cidade que amamos".

    Em "Um Conto de Duas Cidades" (1859), Dickens tratou do impacto da Revolução Francesa sobre os moradores de Paris e da possibilidade de um conflito semelhante em Londres.

    O início do livro expôs o desassossego criado pelas fraturas sociais: "Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da luz, a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o paraíso, íamos direto no sentido contrário...".

    Na introdução de "Tales of Two Cities", Freeman apresenta em números a diferença entre o céu e o inferno em Nova York. Entre 1990 e 2010, a renda média anual do 1% mais rico aumentou de US$ 452 mil para US$ 717 mil (de R$ 1.371.450 para R$ 2.175.500). A dos 10% mais pobres cresceu de US$ 8,5 mil para US$ 9,5 mil (de R$ 25.790,47 para R$ 28.824,81) no mesmo período.

    Em 1990, os 10% dos domicílios mais opulentos angariavam 31% do rendimento gerado em Nova York. Uma década depois, eles detinham 37% do total.

    Atualmente, quase metade dos nova-iorquinos vive à beira da linha da pobreza.

    IMPOSSÍVEL

    "A desigualdade tornou mais difícil para eles conviverem lado a lado sob um propósito comum", escreveu o ex-editor da "Granta". Seu irmão Tim Freeman, em texto publicado na antologia, refere-se ao próprio fracasso em uma metrópole "impossível".

    "O consumidor americano médio é exposto a centenas de referências de Nova York a cada semana, as quais descrevem, no mais das vezes, o lado positivo, divertido, rico e glamoroso", escreve Tim sobre a indiferença às atribulações dos sem-teto. Existem cerca de 60 mil moradores de rua na cidade, dos quais pelo menos 25 mil são crianças, um número recorde, segundo a Coalition for the Homeless (coalizão pelos sem-teto).

    Um dos participantes de "Tales of Two Cities", o escritor indiano Akhil Sharma emigrou com a família para Nova York em 1979, quando tinha 8 anos. À época, ele conheceu "a riqueza da América"."Minha ideia de prosperidade era simples: água encanada, uma programação incessante na TV e poder tomar sorvete", diz à Folha.

    Parte dessa experiência se transformou em um dos melhores livros de ficção de 2014, de acordo com o jornal "The New York Times": "Family Life" [W.W. Norton & Company, 218 págs., R$ 77; e-book, R$ 25,59 na Amazon.com.br] trata de uma família de indianos radicada no Queens. Entre outros problemas, o romance narra a dificuldade de Ajay Mishra, 8, de sentir-se um nova-iorquino.

    "As pessoas se mudam para Nova York por acreditarem que a cidade oferece mais oportunidades, mas obviamente não é o caso", diz Sharma. "O sucesso depende de percepção. Se um indivíduo não se enquadra em certo tipo, terá chances financeiras menores."

    Em "Tales of Two Cities", Sharma revelou como sua vida era frugal: reciclava as latas de cervejas que os amigos consumiam e mantinha as mãos nos bolsos durante o inverno para não comprar luvas. Após estudar na Universidade Princeton, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, ele iniciou uma carreira bem-sucedida de investidor. Quando abandonou Wall Street para ser escritor, Sharma sofreu com a perda de prestígio. Nos 12 anos seguintes, enfrentou o arrependimento e a vergonha.

    "Era muito infeliz no emprego antigo, mas não me preparei para o fato de que nunca mais ganharia tanto dinheiro quanto antes", diz. "Morar em Nova York tornou a mudança mais complicada, pois aqui temos muita consciência da importância do dinheiro." A tendência de ver na acumulação de capital o principal objetivo da existência parece ter contaminado o cotidiano da cidade.

    "Muita coisa mudou desde os anos 1970. A classe média está desaparecendo", diz Sharma, morador do Upper West Side. "No meu bairro, é cada vez mais comum a separação entre os conjuntos habitacionais onde o aluguel pode ser menor que US$ 1.000 e os novos empreendimentos imobiliários em que um apartamento custa pelo menos US$ 2 milhões."

    Dois edifícios de Nova York fizeram do jornalista Michael Gross um autor de best-sellers. Ele acredita que a trajetória dos donos de imóveis nessas construções revelaria o que significa ser rico em Nova York. Em "740 Park" [Broadway Books, e-book, R$ 29,09 na Amazon.com.br], Gross narrou a história dos que desde a Grande Depressão moraram no prédio da esquina da Park Avenue com a 71st Street, no Upper East Side, região de maior renda de Manhattan.

    O cineasta Alex Gibney usou "740 Park" como inspiração para o filme "Park Avenue: Money, Power and The American Dream" (2012). Diretor de "Um Táxi para a Escuridão", ganhador do Oscar de melhor documentário em 2008, Gibney julgou ser um exemplo perfeito das disparidades nova-iorquinas uma avenida que se inicia no Bronx, onde existe a maior concentração de pobreza da cidade, e que se expande para o Sul, onde estão "os bons edifícios", como os descreveu Tom Wolfe.

    No seu segundo best-seller, "House of Outrageous Fortune" [Atria Books, e-book, R$ 27,39 na Amazon.com.br], Gross descreveu os compradores de apartamentos do 15CPW, um condomínio na esquina da Central Park West com a 61st Street, no qual uma cobertura custa cerca de US$ 100 milhões. Ele cita oligarcas russos e chineses, executivos do Citibank e do J.P. Morgan Chase, o ator Denzel Washington, o músico Sting e o jogador de beisebol Alex Rodriguez.

    Em comum, diz Gross, eles têm o fato de serem donos de fortunas sem precedentes geradas nos setores de tecnologia, finanças, entretenimento e informação.

    A diferença entre a elite tradicional do 740 Park e os novos-ricos do 15CPW estaria, segundo o autor, no grau de compromisso com a cidade. "A obrigação econômica com Nova York é insignificante para a elite de riqueza recente", diz Gross à Folha. "Não há uma necessidade de assimilação ou de participação em instituições de caridade quando o dinheiro – e não mais o país, a família ou os amigos– é o que define um indivíduo."

    Gross explica que as propriedades multimilionárias representam para os novos-ricos mais um investimento do que uma moradia. "Quando passeio à noite na região ao sul do Central Park, vejo vários apartamentos às escuras. Quase ninguém mora ali", diz Gross. As luzes apagadas são comuns nos condomínios mais caros da cidade localizados na Billionaires' Row, uma área de Midtown entre a 57th e a 53rd Streets. "A falta de envolvimento dessa parcela da população tem um grande impacto sobre a dinâmica da vida urbana."

    Autor de "Modern New York: The Life and Economics of a City" [Palgrave Macmillan, e-book, R$ 90,49 na Amazon.com.br], Greg David prefere falar de correlação, e não de causa. Ele contesta a tese de Joseph Stiglitz, ganhador do Nobel de Economia em 2001, de que a desigualdade estrangula as oportunidades de ascensão e arruína a coesão social. "Nova York é diferente", afirma David à Folha. "Embora seja a metrópole mais desigual dos EUA, é a sexta em termos de mobilidade."

    Professor do The Graduate Center, da Cuny (Universidade da Cidade de Nova York), David diz que as perspectivas socioeconômicas não pioraram ainda mais em Nova York por conta do bom desempenho das escolas de ensino básico e do transporte público abrangente, algo raro no resto dos EUA.

    "A disparidade é maior aqui porque a cidade atrai os donos de grandes fortunas. Os ricos nova-iorquinos são os mais abastados e numerosos do país." Quem deseja entender a Nova York de amanhã, ele sugere, deve acompanhar o nível de dependência da cidade em relação à sua nova elite.

    FRANCISCO QUINTEIRO PIRES, 32, jornalista brasileiro radicado em Nova York.

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