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    Ponto Crítico - Marina Abramovic e Sean Scully - União de contrários

    TIAGO MESQUITA

    03/05/2015 03h00

    Não poderiam ser artistas mais diferentes. Marina Abramovic e Sean Scully vêm de lugares distintos, trabalham de maneiras diversas e a relação que cada um dos dois artistas tem com sua obra chega a ser oposta. No entanto eles compartilham um humanismo difuso, típico dos anos 70.

    Hoje, podemos ver um escopo bastante abrangente da obra de ambos em São Paulo. Duas boas exposições retrospectivas nos permitem reconstruir o percurso de uma e de outro ("Terra Comunal", de Abramovic, fica só mais esta semana em cartaz no Sesc Pompeia; a de Scully segue até 28/6 na Pinacoteca). O impulso humanista, em ambos os casos, vem de uma reação a produções artísticas mais assépticas dos anos 60.

    Para alguns artistas conceituais e minimalistas, estava vetada qualquer possibilidade de individualidade ou de expressão. A arte organizava esquemas, raciocínios, projetos. Dispunha objetos sem personalidade e, por vezes, preferia os teoremas a qualquer apelo enganoso aos sentidos. A experiência particular e a obra singular perdiam a importância.

    Marina Abramovic, como outros artistas das neovanguardas, quer aproximar arte e vida. A obra acontece a partir de ações da artista diante do público, sem representação, sem outros objetos; performances impactantes, que despertariam a audiência do sono da indiferença moderna.

    Em "Energia em Repouso" (1980), por exemplo, a artista coloca-se diante de um arco flexionado com uma flecha em um equilíbrio delicado. Há perigo iminente.

    O problema é que, após diagnosticar suposta letargia contemporânea, ela quis oferecer o tratamento.

    Embora tenha feito trabalhos notáveis recentemente, como o vídeo "Dangerous Games" (2008), seu empenho em resolver os males da modernidade incomoda. Parece uma suma sacerdotisa da presença, alguém dizendo que sabe como fazer de você uma pessoa melhor. Oferece sessões de meditação, aplicação de cristais, terapia em grupo, tudo com a grife Abramovic. Ser remédio não é vocação da arte. Ao invés de uma experiência reflexiva, somos convidados a acreditar em sua profilaxia. Para quem não tem fé fica difícil.

    Nada parece mais distante do trabalho de Sean Scully do que a tentativa de conciliar o público com o mundo. A obra lida com inconciliáveis e tudo que o artista faz é errar. No melhor sentido.

    A forma é desequilibrada, exagerada, direta. Certas cores beiram o mau gosto. São opacas, tronchas desajeitadas. Mesmo assim, precisam dar certo na estrutura que o artista define. Mas também não cabem nessa estrutura. Os seus quadros são só risco. Fazer arte aqui é tentar equacionar o irresoluto. Não existe messianismo, emplastro Brás Cubas nem alguém dizendo o que fazer com sua vida.

    A curadoria de Jacopo Crivelli Visconti é primorosa. O trabalho se mostra mais variado do que se poderia imaginar. As pinturas apontam para diversas direções e, a cada uma delas, não são soluções que aparecem, mas novos problemas. Eles não se resolvem, se desdobram em outros.

    Não há esquema que dê conta das experiências individuais. Tudo é singular. As faixas não são regulares. Para que fiquem equilibradas, precisam de arranjos intrincados, e uma cor vaza na outra.

    Diferentemente do que ocorre na pintura minimalista, ou nos projetos construtivos, aqui a forma não se acomoda a esquemas preexistentes. O colorido se mostra como massa pesada, desajeitada. Lembro-me mais do aspecto massudo das pinturas de Philip Guston e da dedicação meditativa de Agnes Martin.

    Não há proporção ou esquemas idealizados nos quais o colorido possa encaixar. Tudo é difícil demais. Mesmo porque não há disfarce. Scully mantém o gesto marcado, cada pincelada evidente. É um acúmulo impressionante de trabalho. Algumas formas parecem pesadas demais para o esquema que as sustenta. Uma vai se acertando a outra e tudo parece provisório.

    À maneira de um Sísifo, o artista constrói suas telas como se empilhasse pedras enormes, cheias de limo, sem estrutura, sem armação, sem argamassa. É torcer para não cair.

    Fui à retrospectiva de Scully um dia depois de visitar "Terra Comunal", de Abramovic. Saindo da exposição da artista sérvia me lembrei do anúncio no humorístico: "Seus problemas acabaram". Na de Scully, o tom era mais baixo, daí matutei: "Pois é, tudo é bem mais complicado". Não serve de consolo, mas melhor assim.

    TIAGO MESQUITA, 36, é crítico de arte, autor de "O Olhar do Colecionador" (BEĨ Editora).

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