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    A beleza das vidas ordinárias: a arte colorida de William Eggleston

    FELIPE SCOVINO
    fotografia WILLIAM EGGLESTON

    03/05/2015 03h00

    RESUMO Em cartaz no Rio, mostra do norte-americano William Eggleston expõe a importância do autor para fixar a fotografia colorida no circuito de arte. Voltada para a vida comum, que parece escapar ao universo triunfante do "american way of life", sua obra faz lembrar a de um conterrâneo seu, o pintor Edward Hopper.

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    William Eggleston (1939) é um dos nomes mais importantes para que a fotografia colorida tenha sido reconhecida como linguagem plástica pelo circuito de arte, especialmente porque ele a utilizou como um elemento ímpar para que questões políticas e sociais pudessem ser refletidas em um momento muito especial da história econômica dos Estados Unidos.

    Seu trabalho atravessa desde os anos dourados do fordismo até o seu esgotamento, passando pelo rápido crescimento industrial, as estratégias de internacionalização do capital e a produção em massa de bens de consumo que instituíram a maior economia mundial e um modelo capitalista (e excludente) disfarçado de modernizador, baseado no acúmulo de capital e na praticidade da vida moderna, cercada agora de carros velozes, TVs e toda a forma de tornar a existência mais agradável.

    Em cartaz até 28 de junho no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, a mostra "William Eggleston, a Cor Americana", com curadoria de Thyago Nogueira, apresenta cerca de 170 obras, com destaque para a série "Los Alamos" (1966-68 e depois entre 1972-74).

    Eggleston Artistic Trust
    Crédito: Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York Legenda: William Eggleston, do portfólio Los Alamos, 1965-74 ILUSTRISSIMA ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Do portfólio Los Alamos, 1965-74. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

    Acompanhado por Walter Hopps –e como no roteiro de um "road movie"–, o artista atravessou os Estados Unidos e focou sua câmera em um país distante do descrito nas primeiras linhas do texto: era o sul pobre, menos desenvolvido e distante do idealizado "american way of life" que estava sendo desenhado pela nação rica e desenvolvimentista.

    Eggleston, de forma aguda, exibiu uma face dos EUA que não queria ser revelada. Essa histórica série expõe uma sociedade atrasada e descrente. As imagens variam intensamente, descrevendo um movimento paradoxal: ficam entre a apatia e o tédio, mas, em certos casos, captam um olhar de contentamento na face de seus personagens, num mundo que se resume a pequenos prazeres.

    A atmosfera é meio empoeirada, distante dos arranha-céus de Nova York ou Chicago. Era como se essas pessoas estivessem vivendo numa espécie de dimensão paralela, lateral, em relação ao processo modernizador. A grande potência e o futuro arrebatador se escondiam por detrás do atraso e da falta de perspectiva, percebida nos olhos e gestos dos retratados.

    O artista documenta os aspectos mais mundanos e superficiais da vida, como o jovem empregado de um supermercado recolhendo carrinhos no estacionamento ou o logotipo velho de uma lanchonete contrastando com sua própria memória: o que resta é um passado distante de uma modernidade que há muito desapareceu ou nem sequer passou por aquelas bandas.

    A imagem colorida e a forma como documenta o que está a sua volta o aproxima de um dos maiores pintores do século 20. De gerações distintas, mas constituindo um fio contínuo e crítico sobre a sociedade norte-americana, Eggleston e Hopper (1882-1967) acentuam, cada um a seu modo, um sentimento de descrença, e o que assistimos nas obras de ambos são planos esvaziados, cortes abruptos, pessoas comuns que não conseguem encarar o mundo.

    Em uma das fotografias, a câmera de Eggleston foca um casal sentado frente a frente em um "diner". Apesar da proximidade, é o silêncio que impera naquele instante, já que os seus rostos são encobertos pela cabeleireira da mulher, que, vista de costas, ocupa o primeiro plano da foto. Seus personagens não posam para a câmera, são capturados no registro mais trivial de suas ações. Suas obras são embates entre o sujeito e o mundo, mas de forma alguma podem ser consideradas pessimistas –e sim assustadoramente reais.

    Eggleston Artistic Trust
    Crédito: Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York Legenda: William Eggleston, do portfólio Los Alamos, 1965-74 ILUSTRISSIMA ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Do portfólio Los Alamos, 1965-74. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

    A cor é o fator que impõe essa distinção, pois a atmosfera não é de tristeza, mas de esquecimento. O artista parece nos indicar que aqueles lugares e pessoas ficaram entre tempos, isto é, não fizeram parte da grande estratégia nacional de modernização, daí esse sentimento de não pertencimento e de marginalidade que sobrevoa as imagens, e, por isso mesmo, a sensação de que, nas suas fotos o mundo corre de forma mais devagar, em um ritmo diferente daquele das metrópoles.

    A imagem de um freezer com o logotipo da Coca-Cola carcomido pelo tempo, árido, quase uma ruína, é sintomática dessa leitura. Um modelo econômico que mais exclui do que agrega parece revelar suas raízes, distorções, utopias e desejos nas fotos de Eggleston.

    Por questões de conservação, o Rio é a única cidade no Brasil a receber a exposição. Entretanto, o catálogo [Instituto Moreira Salles, 156 págs., R$ 129,90] –que, além de reproduzir boa parte dos trabalhos da mostra, traz textos do curador, do músico David Byrne, do escritor Geoff Dyer e do crítico de arte Richard Woodward– é uma excelente porta de entrada para a obra de Eggleston.

    FELIPE SCOVINO, 36, é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e crítico de arte.

    WILLIAM EGGLESTON, 75, é fotógrafo norte-americano.

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