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    Monday, 20-May-2024 02:57:35 -03

    Leia um trecho do romance "O Vento que Arrasa", de Selva Almada

    SELVA ALMADA
    tradução SAMUEL TITAN JR.
    ilustração DEBORAH PAIVA

    10/05/2015 03h00

    SOBRE O TEXTO O primeiro romance da autora narra o encontro de um pastor e sua filha com um jovem que o religioso julga iluminado. Aclamado em seu país, o livro sai em julho, pela Cosac Naify.

    *

    A última imagem que Leni guarda da mãe é através do para-brisa traseiro do carro. Leni está dentro, ajoelhada no banco, com os bracinhos e o queixo apoiados no encosto. Lá fora, o pai acaba de fechar o porta-malas com força, depois de tirar uma das malas e deixá-la no chão, ao lado da mãe. Ela está de braços cruzados e veste uma saia longa, como as que Leni usa, agora que está crescida. Atrás dos pais, sobre a rua de terra de um lugarejo qualquer, vai se levantando um céu rosado e cinzento de amanhecer. Leni está com sono e tem a boca pegajosa, com gosto de pasta de dente, pois saíram do hotel sem tomar café da manhã.

    A mãe descruza os braços e passa uma das mãos sobre a testa. O Reverendo está falando com ela, mas, dentro do carro, Leni não consegue escutar o que ele está dizendo. Mexe muito as mãos. Levanta o indicador e o abaixa e aponta para a mãe, balança a cabeça e continua falando em voz baixa; pelo trejeito da boca parece que morde as palavras antes de soltá-las.

    A mulher faz menção de ir até o carro, mas o Reverendo se interpõe e ela se congela em meio ao movimento. Estão brincando de estátua, pensa Leni, que sempre brinca disso, sempre em pátios diferentes e sempre com crianças diferentes, depois do sermão dominical. Com o braço estendido e a palma da mão aberta para a frente, o Reverendo, seu pai, caminha para trás e abre a porta do motorista. A mãe fica parada ali, junto à mala, e cobre o rosto com as mãos. Está chorando.

    O automóvel se põe em marcha e logo arranca, levantando uma nuvem de poeira. Então a mãe corre uns metros atrás do carro, feito um desses cachorros abandonados na estrada durante as férias.

    Deborah Paiva
    Pintura para a imaginacao da artista Deborah Paiva. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Pintura da artista Deborah Paiva.

    Isso aconteceu há quase dez anos. Leni não se lembra com exatidão do rosto da mãe. Lembra que era uma mulher alta, magra e elegante. Quando se olha no espelho, tem a impressão de que herdou seu porte. No começo, achava que era só um desejo de se parecer com ela. Mas agora que é mulher, mais de uma vez já pegou o pai olhando para ela com uma mistura de fascínio e desprezo, como quem olha para alguém que traz boas e más recordações, a um só tempo.

    O Reverendo e Leni nunca falaram daquele episódio. Ela não sabe o nome do lugarejo onde deixaram a mãe, mas acha que, se voltassem a passar por aquela rua, saberia reconhecê-la no ato. Esses lugares não mudam muito ao longo dos anos. De todo modo, o Reverendo deve se lembrar muito bem do ponto preciso do mapa em que deixou a esposa e certamente o apagou para sempre dos seus itinerários.

    Daquela manhã em diante, o Reverendo Pearson passou a se apresentar como um pastor viúvo com uma filha pequena para criar. Um homem nessa condição gera automaticamente confiança e simpatia. Um homem a quem Deus arrebatou a esposa na flor da juventude, deixando-o sozinho com uma criança pequena, e que mesmo assim segue em frente, firme na fé, inflamado pela chama do amor a Cristo –um homem assim é um homem bom, um homem a quem se deve escutar atentamente.

    Tapioca também não lembra muita coisa da mãe. Quando ela o abandonou, ele teve de se acostumar ao novo lar. O que mais lhe chamou a atenção foi aquele montão de carros velhos. O cemitério de carros e os cachorros serviram de consolo durante as primeiras semanas, enquanto ele se conformava com a ideia. Passava o dia inteiro metido no meio das carcaças: brincava de dirigir aqueles automóveis e sempre tinha três ou quatro cachorros de copilotos. O Gringo deixava. Foi se aproximando aos pouquinhos, como se o menino fosse um bichinho do mato que ele precisasse amansar. Começou contando a história de cada um daqueles carros que, um dia, tinham transitado por ruas e até por estradas sem fim. Muitos não tinham ido só até Rosario, como a mãe dele, mas sim até Buenos Aires e a Patagônia. Brauer foi buscar uma pilha de mapas viários do Automóvel Clube, e à noite, depois de jantar, mostrava os pontos por onde, segundo ele, os carros tinham andado. Com o dedo grosso, manchado de graxa e nicotina, ia seguindo as linhas e explicava que a cor de cada traço marcava a importância da estrada em questão. Às vezes o dedo de Brauer trocava bruscamente de rumo, saía da estrada principal para tomar um caminho mal insinuado, uma linha mais fina que um cílio, que terminava num pontinho. O Gringo dizia que o motorista do carro tinha passado a noite naquele lugar e que agora também era hora de ir dormir.

    Outras vezes, a ponta do dedo do mecânico passava aos pulinhos por uma linha pontilhada, uma ponte erguida sobre um rio. Tapioca não sabia nem o que era um rio, nem o que era uma ponte, e então Brauer explicava tudo.

    E, outras vezes, o dedo se movia sinuoso, vagaroso, por um caminho na montanha. Certa vez, o dedo chegou até o fim do mapa e o Gringo falou do frio, de um frio que jamais chegariam a conhecer no Chaco, um frio que deixava tudo branco. Ali, no inverno, a estrada ficava coberta de gelo e o gelo fazia os pneus patinarem e causava os acidentes fatais. Tapioca sentia medo de um lugar desses e pensou que era uma sorte estarem bem na parte de cima do mapa e não ali onde terminava o mundo.

    O Gringo Brauer comprava os carros da polícia da província. Tinha um contato lá dentro. Eram vendidos como ferro-velho. Em geral, eram carros confiscados em acidentes ou incêndios. De vez em quando, entrava um roubado. Nesse caso, o Gringo cuidava da mecânica; a polícia limpava os papéis, trocava a matrícula evendia aos ciganos. Pagavam a Brauer pelo trabalho, mais um tanto pela colaboração.

    Intercalando as histórias dos mapas, o Gringo contava o momento em que o carro deixara de pertencer a seu dono para vir terminar ali com eles. Recriava acidentes, e Tapioca escutava tudo com os olhos graúdos e atentos. No começo, os ocupantes do automóvel sempre saíam ilesos; o carro, destroçado, mas as pessoas, sãs e salvas. Depois, o Gringo achou que estava na hora de familiarizar o garoto com a morte, de modo que a partir daí todas as histórias tiveram um arremate definitivo e sanguinolento. Nas primeiras vezes, Tapioca teve pesadelos. A mãe, o próprio Brauer ou as poucas pessoas que conhecia morriam presas entre os ferros retorcidos, os corpos voavam dos bancos, atravessando o para-brisa ou se carbonizando no veículo em chamas, prisioneiros de portas emperradas. Acabou se acostumando, e já não voltou a sonhar com as cenas que o Gringo narrava.

    A culpa não é dos carros, Brauer dizia sempre, a culpa é de quem dirige.

    Quando a mãe o abandonou, Tapioca tinha completado o terceiro ano. Sabia ler, escrever e fazer contas. O Gringo também não tinha terminado a escola, e por isso não lhe pareceu necessário que o menino fosse adiante. A escola mais próxima ficava a várias léguas, e seria uma complicação levá-lo e trazê-lo todos os dias. A educação formal que tivera até os oito anos já bastava. Dali em diante, decidiu Brauer, Tapioca tinha que aprender sobre a natureza e o trabalho.

    Essas duas coisas não seriam ciências, mas fariam do garoto uma pessoa de bem.

    SELVA ALMADA, 42, é escritora argentina, autora de "O Vento que Arrasa".

    SAMUEL TITAN JR., 44, é tradutor e professor de teoria literária e literatura comparada na USP.

    DEBORAH PAIVA, 64, é artista plástica e professora de pintura no Instituto Tomie Ohtake.

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