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    Contra o aluguel estratosférico, Nova York mescla renda alta e baixa

    RAUL JUSTE LORES

    10/05/2015 03h00

    RESUMO Diante da valorização dos imóveis em Nova York, a prefeitura tem tomado uma série de medidas, com apoio de outras instâncias de governo, para garantir moradia barata em projetos realizados a iniciativa privada. Novos edifícios oferecem unidades para moradores de classes distintas, com rendimentos diferentes.

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    PDK Commercial Photographers
    rendering/illustration/sketch of the Arbor House - Ilustrissima ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Edifício Arbor House, no Bronx

    A estufa com uma horta de quase mil metros quadrados é o ímã visual no topo do edifício Arbor House, no Bronx, em Nova York.

    Com oito andares, ele virou um símbolo dos programas mais recentes de moradia popular na maior cidade americana. A horta, administrada por uma empresa de Boston, produz verduras e legumes mais baratos para os moradores e ainda possui um sistema de armazenamento da água de chuva, reutilizada em todo o prédio.

    Nos apartamentos, os sanitários têm descargas separadas para resíduos sólidos e líquidos, a fim de racionalizar o uso da água. Tomadas, termostatos e até a luz são regulados para consumir menos quando não há ninguém em casa.

    Todos os materiais, da tinta dos interiores aos painéis de revestimento, tiveram que seguir regras de construção sustentável e saudável, estipuladas no governo do ex-prefeito Michael Bloomberg. Há aparelhos de ginástica em áreas internas e externas feitos de material reciclado. O Hospital Mount Sinai fez parceria com o condomínio para promover práticas saudáveis.

    Segundo Les Bluestone, dono do Arbor House, o prédio inaugurado em 2013 custou US$ 38 milhões (cerca de R$ 114 milhões), contando com subsídios federais, estaduais e municipais para produzir o que parece ser o bem de maior escassez hoje em dia em Nova York: moradia barata.

    "Ele foi erguido literalmente no quintal de um conjunto habitacional de prédios baixinhos, dos anos 60. A prefeitura vendeu o terreno a um preço abaixo do valor de mercado", diz Bluestone. Os 124 apartamentos são para aluguel, parte do qual é paga por vouchers do governo federal. A gestão é feita pelo próprio incorporador.

    LAJOTAS Nenhuma cidade americana fez tanto por moradia popular como Nova York. Os primeiros conjuntos habitacionais nasceram em 1935, e nos anos 40 e 50 centenas de edifícios revestidos com lajotas ou tijolos vermelhos, cercados por jardins, foram erguidos do Chelsea ao Lower East Side, do East Village ao Harlem e ao Bronx. Ainda hoje, cerca de 600 mil nova-iorquinos moram nos chamados "projects" –83% das unidades ficam a menos de 800 metros de uma estação de metrô.

    Esses prédios eram erguidos pela prefeitura ou por sindicatos e associações de moradores, e os residentes pagavam locação social, de acordo com a renda. Se a renda aumentasse (e fosse honestamente declarada), o inquilino deixaria a unidade para outra pessoa.

    Os "projects" foram bastante criticados. No início, havia segregação entre brancos e negros; já nos anos 50, a jornalista e urbanista Jane Jacobs dizia que esses condomínios matavam a vida de rua, por serem tão recuados, isolados no meio da quadra, e que acabavam com as calçadas em que mesclavam residência e comércio, comuns no restante de Manhattan.

    Nos anos 60 e 70, Nova York sofreu uma grande crise econômica, que levou a prefeitura a quase declarar falência em 1976. A cidade perdeu cerca de 1 milhão de moradores, e 600 mil empregos evaporaram. A manutenção dos conjuntos, que já eram bolsões de pobreza e violência, piorou.

    Nos anos 80, com cortes no orçamento para a habitação no governo Reagan, a prefeitura praticamente deixou de erguer edifícios.

    Mas o então prefeito Ed Koch fez limonada com a tal crise. "Koch começou a dedicar milhares de propriedades e terrenos que acabavam de ser confiscados por inadimplência ou abandono para nova moradia popular, em parcerias público-privadas, nas quais a prefeitura entrava com terrenos e deduções fiscais, e a iniciativa privada construía e mantinha os novos edifícios de aluguel", diz Mark Willis, diretor do centro de estudos urbanos Furman, Universidade de Nova York, que trabalhou naquele governo. Cerca de 250 mil unidades foram entregues em pouco mais de uma década (Koch foi reeleito duas vezes).

    Mas, de lá para cá, Nova York tornou-se outra cidade. Os terrenos nas mãos da prefeitura se esgotaram, a violência caiu a níveis quase europeus, a população voltou a crescer ano após ano, e milionários chineses, russos e brasileiros começaram a investir em propriedades na cidade, inflacionando o metro quadrado, de Manhattan ao Brooklyn.

    Leis de estabilização do aluguel protegem 45% dos apartamentos de locação na cidade, garantindo reajustes mínimos. Nessa escassez de oferta, os apartamentos novos estão cada vez mais valorizados.

    Nos anos 1990 e 2000, para evitar a repetição dos bolsões de pobreza dos velhos "projects", outra política foi colocada em prática: os chamados 80/20. Empreendimentos que voluntariamente separam 20% para aluguéis bem mais baixos e subsidiados, com 80% das unidades alugadas segundo o valor de mercado. Em troca, a prefeitura concede isenções fiscais ou permite maior altura ou densidade ao construtor.

    OPORTUNIDADES "Um desafio na criação de moradia popular é encaixá-la em vizinhanças de renda variada, onde há mais oportunidades de emprego, de boas escolas", diz Willis, da Universidade de Nova York. Há 3.000 apartamentos em construção nesse sistema, que só funciona em áreas mais desejadas, onde os preços altos do mercado bancam o que se perde com as unidades "baratas".

    No ano passado, o raro caso de um condomínio que projetou entrada separada para os moradores dos 20% causou escândalo, e o prefeito Bill de Blasio prometeu mudar regras para evitar o acesso segregado. De Blasio dobrou o orçamento para habitação e pretende entregar 16 mil apartamentos subsidiados por ano.

    Por enquanto, com o preço do metro quadrado e custos de construção cada vez mais caros, as unidades baratas viraram objeto de loteria. No novo condomínio AVA High Line, de oito blocos, vizinho ao valorizadíssimo parque suspenso no Chelsea, 710 apartamentos têm aluguel de mercado, e 142 são subsidiados.

    O aluguel do estúdio de 48 metros quadrados fica em US$ 520 –o mesmo estúdio em valor de mercado custa US$ 3.100 ao mês. No vizinho Chelsea Park, as 51 unidades a preços populares atraíram 15 mil candidatos.

    Para concorrer a um apartamento ali, é requerida uma vasta documentação (de banco e impostos a contas de luz e cartas) comprovando que a renda anual do candidato esteja entre US$ 19 mil e US$ 24 mil –algo entre R$ 57.530 e R$ 72.630, pouco acima do salário mínimo local, mas ainda considerado dentro da linha de pobreza em Nova York.

    RAUL JUSTE LORES, 39, é correspondente da Folha em Washington.

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