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    O Brasil moderno do casal Bardi

    RENATO ANELLI

    10/05/2015 03h00

    RESUMO Em entrevista à "Ilustríssima", o diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa, considerou que o museu era fruto de uma tensão entre duas visões, a de Pietro Maria Bardi, um homem do século 19 e Lina Bo Bardi, uma mulher do século 20. Aqui, Renato Anelli defende que houve diálogo constante, e não antitético, entre os dois.

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    Conhecer e avaliar o papel de Pietro Maria Bardi (1900-99) na formação e desenvolvimento do Masp é um desafio que cresce conforme se amplia o reconhecimento da arquitetura de Lina Bo Bardi (1914-92).

    É grande o risco de torná-los tese e antítese, como fez o curador Adriano Pedrosa em entrevista publicada na Ilustríssima de 26 de abril passado.

    Em meio ao excelente trabalho de recuperação da expografia e da arquitetura do museu que desenvolve, o curador se equivocou ao considerar Pietro "um homem do século 19" em oposição a uma Lina "moderna, do século 20". A desproporção entre os estudos acadêmicos sobre ambos vem ampliando o risco de atribuir a Lina concepções elaboradas pelos dois, ou mesmo apenas por Pietro.

    Mais correto seria entendermos o Masp como o fulcro de um projeto de ação cultural modernizadora do casal Bardi, que se estendeu à arquitetura, design, teatro, moda, publicidade, edição e ensino.

    Quando se conheceram, em 1943, Lina estava no início de sua carreira, enquanto Pietro já apresentava uma longa trajetória pautada pela defesa da arte e da arquitetura modernas. Autodidata, combinou várias frentes de atuação em revistas e jornais à atividade de marchand e, mais tarde no Brasil, de diretor de museu.

    Destaque-se que a participação de Pietro na organização da "Segunda Mostra Italiana de Arquitetura Racional", em 1931, foi decisiva para o espaço conquistado pelos jovens modernos na Itália fascista. Seu objetivo foi disputar a hegemonia exercida por Marcello Piacentini, então no controle de um processo de modernização sem ruptura com a tradição acadêmica.

    Bardi organizou uma exposição provocativa, iniciando com um painel de colagens que ridicularizava o provincianismo da arquitetura italiana. Durante a visita de Mussolini à abertura da mostra, apresentou um documento ao Duce, no qual defendia que a arquitetura racionalista deveria ser adotada como arte de Estado, por ser a melhor expressão daquilo que entendia ser o caráter modernizador do fascismo.

    Apesar da reação negativa ao pleito, abriu-se ali um período de aceitação da arquitetura moderna em muitos projetos públicos.

    De toda sua ação como editor, crítico e jornalista, a experiência mais bem sucedida foi a revista "Quadrante", fundada por ele em 1933 e um dos principais vetores do debate moderno.

    No mesmo ano aproximou-se dos arquitetos das vanguardas ao participar do quarto Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Ao levar Le Corbusier para conferências em Roma e Milão, em 1934, Bardi consolidou-se como uma referência de militância moderna. Atuação que despertaria a atenção da jovem Lina Bo.

    Sua adesão ao fascismo é controversa. Estudos recentes revelam uma figura isolada, cuja concepção política não era aceita pelos membros do Partido Fascista. Do fascismo, manteve apenas sua clara predileção por líderes fortes, motivo da imediata empatia com Assis Chateaubriand no Brasil.

    Da Itália trouxe a concepção museográfica, o modo de expor segundo o qual as obras interagem com a arquitetura dos palácios e castelos restaurados. O design das exposições de Franco Albini, de 1941, em Milão, com seus suportes delgados e transparentes, iguais aos usados na primeira sede do Masp, já estava esboçado na disposição dos quadros soltos das paredes na Galleria d'Arte di Roma, dirigida por Pietro desde 1930.

    TEMPOS

    O problema de fundo era como pensar o moderno na Itália, um país com a presença de remanescentes de tantos tempos distintos de arte e arquitetura nas ruas das suas cidades.

    Na arte metafísica de De Chirico o tema central era essa convivência. Luz e perspectiva criavam uma dimensão de eternidade, além de qualquer instrumentalização do clássico pelo presente.

    Não por acaso os desenhos de Lina para o nunca construído Museu à Beira do Oceano (1951) utilizavam a profundidade e a luz metafísica, representando os quadros e esculturas através de colagens em perspectiva, com o oceano infinito ao fundo.

    Esse ensaio se concretizaria na sala da Casa de Vidro e, posteriormente, na transparência da sede do Masp na Paulista. Cavaletes de vidro e fachadas transparentes dispunham as obras de arte em um mesmo espaço e tempo, suspenso sobre a cidade, entre o verde do parque e a vista para o vale.

    O papel de um museu de arte no Brasil colocava problemas novos em relação à experiência italiana. O MoMA de Nova York tornou-se referência, pela sua ação educativa. Desde 1947 o casal Bardi acompanhou as diretrizes do Icom (sigla para o nome em inglês do Conselho Internacional de Museus), que propunham museus como espaços voltados à formação de público e artistas.

    O Masp foi criado com esse programa, entendendo a enorme potencialidade do rápido crescimento econômico e populacional de São Paulo no pós-Guerra. Em 1950, a criação do Instituto de Arte Contemporânea no Masp ampliou o caráter formativo dos primeiros anos, introduzindo cursos como o de desenho industrial, propaganda e marketing, moda, cinema, entre outros. Projeto de inserção ativa no processo de modernização e industrialização brasileira, que se esgotaria alguns anos depois, em meio a embates políticos ao redor de seu patrono, o polêmico Chatô.

    O caráter formativo do museu trazia o risco do eurocentrismo, corretamente apontado pelo atual curador na entrevista. Contudo foi enorme o esforço de reconhecimento da cultura brasileira desenvolvido por Pietro e Lina, podendo ser acompanhado nos artigos da revista "Habitat".

    Não havia contraste entre o interesse por Le Corbusier, arte barroca, ex-votos nordestinos. A cultura popular estava claramente articulada ao erudito, fosse antigo ou moderno. O museu deveria ser "sem limites", como Pietro afirma em artigo de 1951, na "Habitat".

    Em sua biblioteca pessoal, livros essenciais do pensamento brasileiro apresentam anotações e destaques que alimentaram a transformação do casal nas décadas que viveram no Brasil.

    A partir do final da década de 50, com a experiência em Salvador e sua radicalização política após o golpe de 1964, Lina explicitou um caráter próprio frente a Pietro. No entanto, o diálogo entre os dois permaneceu por toda a vida, de modo muito mais complementar do que antagônico.

    Somente uma maior atenção à trajetória de Pietro será capaz de reequilibrar o que conhecemos da contribuição do casal Bardi para a cultura brasileira.

    RENATO ANELLI, 55, arquiteto, diretor do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, é curador da mostra "Lina em Casa: Percursos", em cartaz na Casa de Vidro até 19/7.

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