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    Espaço público: museu de Londres realiza exposição sobre si mesmo

    EDWIN HEATHCOTE
    DO "FINANCIAL TIMES"

    10/05/2015 12h00

    A erosão do reino público fez dos museus públicos um dos últimos espaços verdadeiramente cívicos; os museus estatais britânicos, especialmente, com seu ingresso gratuito, complexo legado de saque imperial, filantropia, intenções didáticas vitorianas e inclusão contemporânea digna de respeito, representam uma rede notável de espaços públicos. E a afirmação da mais recente exposição do Victoria and Albert Museum (V&A) é de que eles pertencem a nós. A questão é como usá-los.

    "All of This Belongs to You" [tudo isso pertence a você] é uma tentativa de explorar tanto o papel do museu na sociedade e o que significa ser cidadão no século 21. Quanto a isso, a mostra é uma empreitada imensamente ambiciosa e uma exposição importante e sutilmente subversiva de uma espécie que é rara no mundo do design contemporâneo, dominado pelo consumo.

    Usando diversas mídias e técnicas, os curadores entremearam algumas ideias e reflexões fascinantes ao espaço do edifício muito vitoriano do museu. Os artefatos presentes contam histórias de vigilância e medo, terror e taxonomia, sobre a militarização do reino público e sobre as respostas criativas a essas narrativas.

    Como exemplo, o panfleto Vendor Power é um documento de fácil leitura que delineia os direitos dos comerciantes ambulantes na cidade de Nova York, um esforço simples para ajudá-los em seus confrontos com as autoridades que podem desejar deslocá-los de seu espaço de varejo ou impor-lhes multas. O documento foi desenvolvido pelo Centro para a Pedagogia Urbana, uma coalizão sem fins lucrativos de arquitetos, designers e artistas, e sua intenção é tornar melhor a vida urbana melhor - não para as classes criativas, mas para os imigrantes em dificuldade financeira e os aspirantes a empreendedor que operam os carrinhos de comida da cidade. Que esse exemplo de design gráfico seja a melhor coisa na seção de arquitetura da exposição demonstra o quanto os arquitetos vêm se saindo mal em tratar dos reais problemas cotidianos dos cidadãos e da paisagem do microcomércio que dá alma a uma vida de rua cada vez mais corporativa.

    O coletivo de arte e arquitetura Muf, de Londres, optou por uma intervenção nas galerias vitorianas do V&A. A maioria dos artefatos lá expostos vem de espaços públicos - estátuas, fontes, colunas e assim por diante. Por isso o Muf decidiu reaproveitar a área como espaço público. Por sob uma arcada curva, há uma longa mesa para a realização de seminários. Almofadas confortáveis convidam os visitantes a se acomodarem sobre as peças de mármore; e grupos são convidados a usar o espaço.

    O artista britânico James Bridle também considera a natureza do material exposto, mas está igualmente interessado em seus antecedentes e identificou um paralelo curioso com a sociedade de vigilância. Tendo desenvolvido um algoritmo de computador para selecionar aleatoriamente objetos do acervo do V&A, ele em seguida os exibe em companhia de uma massa de documentação. Essas pilhas visualmente imponentes de pastas, certificados de proveniência, artefatos e arquivos ficam expostas em vitrines de alta tecnologia.

    Bridle sugere que a maneira pela qual seu algoritmo seleciona objetos dos arquivos e reúne a extensa documentação sobre eles ecoa a maneira pela qual os serviços de inteligência vasculham dados sobre populações em busca de pessoas que os interessem. O meticuloso arquivo do museu se torna o equivalente cultural de um sistema big data. O que acontece é tanto surpreendente quanto delicioso. Os objetivos selecionados podem ter a mais tênue conexão com o conteúdo que eles devem supostamente representar: um chapéu europeu é selecionado para representar a América porque está adornado com penas de um pássaro brasileiro; o bumerangue selecionado para representar a Austrália na verdade vem da Índia.

    Mas essa aleatoriedade também destaca a riqueza das histórias por trás dos objetos, as correntes cruzadas de influência cultural e comércio mundial. A mistura de estupidez e inteligência que a máquina cria se torna interessante. Nem vale a pena discutir até que ponto esse histórico complicado se revela nas vitrines e nas suas etiquetas de identificação bastante inadequadas, mas as recompensas estão lá, para quem estiver disposto a se dedicar.

    A única porção realmente convencional da mostra está nas galerias de design e explora o segredo na sociedade contemporânea. A peça central é um laptop e disco rígido do jornal "Guardian", destruídos, que um dia armazenaram arquivos das revelações de Edward Snowden sobre as dimensões da vigilância operada pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. O Apple McBook é um objeto de design por direito próprio, mas sua presença na mostra o torna ainda mais imponente pela natureza deliberada do ataque contra seus circuitos e discos rígidos. O que vemos resultou de um gesto de iconoclastia - os arquivos continuaram armazenados em outros pontos do planeta - mas o paralelo que temos é a destruição dos rostos de estátuas na era da Reforma protestante ou as peças de arte figurativa que vêm sendo profanadas recentemente por militantes islâmicos.

    Estamos diante da iconoclastia gestual da era dos dados e design. Em companhia do laptop há um smartphone Cryptaphone 500, produzido pela companhia alemã GSMK e capaz de cifrar comunicações automaticamente. Junto dele há uma de máquina de escrever elétrica tosca, no bege pudim que caracterizava dos computadores dos anos 80. É um exemplo de um aparelho adquirido em massa pelo serviço secreto russo FSB depois das revelações sobre a NSA, uma reação à onipresença da vigilância e um recuo ao mundo analógico.

    Também há uma "camisinha USB" que impede pontos de recarga de extrair dados de celulares e um aparelho cinzento e sinistro que detecta a presença de dispositivos de escuta em uma sala de reuniões, e propõe a questão: o que acontece se houver detecção? Todas as pessoas são revistadas? Tudo o que esses artefatos sugerem é que o nosso espaço foi radicalmente redefinido pelo big data. Vivemos em cidades ocupadas por uma espessa neblina de informação e vigilância digital.

    Existem exemplos, na mostra, de mudanças mais concretas na cidade. Um mourão indistinto de aço inoxidável usado no Parque Olímpico de Londres, instalado entre os intrincados objetos de ferro fundido das galerias de metalurgia, fala sobre o medo de uma metástase do terrorismo que tome todo o tecido urbano. Criados para bloquear caminhões em velocidade de até 65 km/h, a um preço de 10 mil libras, mourões como esse agora estão espalhados pelos espaços públicos do Reino Unido, porque arquitetos e incorporadores imobiliários inserem medidas paranoicas de segurança em suas estruturas. Mas o que não está presente é a maciça subestrutura que torna o mourão tão inexpugnável: uma metáfora perfeita para a ambição da mostra de revelar as camadas ocultas de intenções inerentes a um Estado de segurança.

    Ao lado dessas peças aparentemente banais, as obras de arte encomendas para a exposição se acomodam de maneira um tanto incômoda. A impressão em látex que Jorge Otero-Pailos produziu do interior da reprodução em gesso que o museu abriga da Coluna de Trajano pende como uma figura fantasmagórica, intrigante mas sem contribuir muito para a discussão sobre o reino cívico. A maior decepção da exposição foi a tentativa de instalar cabines de votação da eleição geral britânica dentro do museu, como lembrete de que ele é um espaço público. O pedido foi recusado porque aparentemente isso contrariaria os regulamentos sobre a distância que um eleitor precisa caminhar do meio de transporte público mais próximo até a urna.

    Isso resume outro dos problemas da mostra. Ao espalhar as peças pelo edifício, os curadores Kieran Long, Rory Hyde e Corinna Gardner inteligentemente interrogam a natureza do acervo e da instituição, mas a dispersão dissipa os efeitos dessa postura. Trata-se de uma exposição importante sobre um tema importante, e provavelmente seria necessária uma grande mostra para tratar da questão condignamente. Mas as grandes galerias estão ocupadas pela mostra Alexander McQueen: Savage Beauty, e pelos preparativos para uma mostra chamada "Luxury" [luxo/luxúria].

    Isso é bastante revelador, em si. O museu é parte da infraestrutura do espaço público, mas também deve operar como negócio. Espero que ele continue a ser o espaço determinadamente público - e gratuito - que os curadores sugerem ser necessário.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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