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    Ponto Crítico - Cinema - O amigo Coutinho

    KLEBER MENDONÇA FILHO

    17/05/2015 03h05

    "Últimas Conversas", de Eduardo Coutinho, foi finalizado por sua equipe de colaboradores próximos. O filme abre com a assinatura de Coutinho, acompanhada pela informação sóbria de que o que veremos foi "editado por Jordana Berg e terminado por João Moreira Salles". Isso me passou a sensação de um envelope fechado com uma carta dentro, lacrado e selado pelos amigos do remetente, que não conseguiu enviá-la.

    A questão do "último filme" é um fenômeno interessante no cinema. Se a carreira de um artista é longa, nós nos debruçamos, com o benefício de visão retrospectiva, sobre o seu "último filme", aquele feito antes de morrer e que, querendo ou não, será visto e analisado como prova de que existe ali um "testamento", simbólico talvez. Isso sempre me lembra relatos de um John Huston frágil, sendo ajudado por seus filhos no set de "Os Vivos e os Mortos" ("The Dead", 1987), um dos grandes últimos filmes.

    "Últimas Conversas" é, portanto, um último filme; não sei se deveria ser visto como um "testamento", uma obra-síntese.

    Divulgação
    Uma das adolescentes entrevistadas por Coutinho no filme "Últimas Conversas"
    Uma das adolescentes entrevistadas por Coutinho no filme "Últimas Conversas"

    Os filmes de Eduardo Coutinho sempre me pareceram peças importantes de uma longa e rica sessão de história oral brasileira. Nesse último esforço, temos a combinação tocante da obra autoral que ela já seria com uma demonstração de amor por Coutinho, a pessoa e o artista, uma intrusão necessária, claramente carinhosa. Isso significa que, no filme, juntam-se dois aspectos distintos e que se batem internamente.

    De um lado, o filme do autor que estava vivo e cheio de ideias no set. Do outro, o filme de colaboradores amigos que lidam com o autor e com o companheiro morto. Tentam dar sentido não apenas ao projeto mas aos seus próprios sentimentos em relação a perda.

    Essa mistura humana e fatual resulta numa experiência emotiva multicamadas. Coutinho parece ganhar o alto-falante central com maior frequência nesse filme, quase como se seu registro também tivesse como intenção a documentação dele mesmo -mas, creio, algo desenhado após a sua morte.

    Nesse sentido, há um calafrio simbólico na imagem de Coutinho de costas para uma porta azul entreaberta ao fundo, numa sala vazia. Em primeiro plano, sua voz sugere aquela experiência de vida acrescida de fumaça espessa de cigarro, uma voz que se transformou no personagem dele mesmo, com um equilíbrio constante de ceticismo e generosidade.

    O interesse de Coutinho pelas tensões de vida, quase como um roteirista talentoso à procura de conflitos bons, resultou em narrativas humanas reveladoras do nosso país. Cada sotaque, um rosto e uma história, uma tristeza e uma alegria.

    Não é difícil pensar no Brasil de hoje, suposta "pátria educadora", seja com ironia ou otimismo, vendo os jovens desse filme.

    Em "Últimas Conversas", o sotaque de base é o carioca, a partir de personagens de notável frescor jovem, participantes ativos nas questões que fazem a vida ser tão complexa: rejeição, racismo, desprezo, respeito (ou a falta de). O filme também libera reflexões informais daquele que está ao lado (ou logo atrás) da câmera, trazendo o processo natural de frases soltas dos bastidores de um pequeno set de filmagem para formar mais uma camada do filme. São sons de vozes, sons bons de ouvir.

    Um desses comentários de Coutinho, editados na mixagem final, resulta numa ideia e tanto para um homem que registrou tanta gente com câmera e microfone: talvez a verdade maior dos personagens estivesse nas crianças esse tempo todo, autênticas demais e ainda poupadas das primeiras tristezas conscientes da adolescência, e das confirmações de como a vida pode ser dura na idade adulta. Isso tendo como ouvinte um homem nos seus 80 e tantos anos, à procura de histórias de vida.

    Como teria sido um "Cabra Marcado Para Morrer" só com as crianças da família Teixeira? Ou só as do "Edifício Master", tagarelando sobre viver num prédio-labirinto?

    Finalmente, na semana em que Orson Welles completaria cem anos, a existência de "Últimas Conversas" me faz pensar nos filmes como legados.

    A obra de Welles não só inspira ação e admiração mas exige cuidados que garantam a valorização do autor como criador. "A Marca da Maldade" ("Touch of Evil", 1958) foi reconstruído por Walter Murch a partir de uma longa carta escrita por Welles. Deveremos ainda ver em breve a versão final reimaginada de "The Other Side of the Wind", que Welles nunca terminou -isso há mais de 45 anos. Cineastas são cercados por admiradores, que tentam mantê-los vivos pelos próprios filmes que fizeram.

    KLEBER MENDONÇA FILHO, 46, é crítico de cinema e cineasta pernambucano, diretor de "O Som ao Redor" (2012).

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